segunda-feira, 28 de outubro de 2024

A CAÇADA DA ONÇA E O TAMANDUÁ ATIRADOR



Quem conta esta é o Valdir, morador de Luiz Alves, na beira do Araguaia e frequentador da região do Rio das Mortes no estado do Mato Grosso. E se alguém duvidar do “acontecido”, pode ir lá e perguntar a ele. Lembro que Valdir é um homem de respeito, muito trabalhador e jamais se prestaria a contar algo que não fosse verdade. Talvez, no máximo, tenha suprimido um ou outro detalhe e acrescentado outros, pelo tempo que o fato ocorreu, mas tudo o que narrou é a mais absoluta verdade.

Disse o Valdir:

A minha Cumade Telvina andava incomodada com uma onça que tava atacando os bezerros já fazia alguns dias. E todo mundo sabe que onça quando acha presa fácil e não é combatida, o prejuízo tende a aumentar e muito.

Mas onça é bicho traiçoeiro, não pode ser uma pessoa só para ir em busca dela. Tem que ser conhecedor do assunto e ir bem armado de zagaia, uma boa catervagem de cachorro daqueles que não têm medo do ronco da bruta. Cachorro mufino nem atravessa a pinguela do corgo quando fareja onça. Ou fica onde está ou volta correndo pra casa. Na verdade, o trem é mesmo de dar medo.  

Mas, caçador de onça naquela região do sertão bruto era difícil. Tinha uns que ficaram famosos, mas eram difíceis até de encontrar, pois sempre estavam “a serviço” de fregueses distantes, e com frequência se deslocavam para outras regiões para fazer seu serviço. Outros, estavam vivendo de passado, enchendo o pandu de cachaça nos botecos.

Primeiro, ela falou com seu marido, o Cumpade Zé de Anaia, que tentou desconversar:

— Ah, muié, larga esse trem, onça é bicho perigoso e nóis num tem nem cachorro que presta. Logo essa marvada vai embora e deixa os bezerro em paz. E parece que ela só anda pegano bezerro gabiru das lonjura, daquele gado que num vem nem perto do curral. Larga disso.

Ao ouvir a resposta do marido, Cumade Telvina botou as mãos nos quartos e disse:

— Ora, ora, larga de ser medroso, mufino, Seu Zé. Se você não quer, eu dou um jeito sozinha. Quer saber? Vou já na fazenda da Cumade Ana e peço pro Cumpade Valdir ir comigo. E se você tem medo de onça, eu não tenho não. Arreia minha égua que tô de saída. E se você num quiser vim junto, num vem.

Cumpade Zé deu uma chupada no cigarro de palha apagado, olhou pra Cumade e viu que não tinha jeito. Tinha que ir mesmo. Sua esperança era que minha véia e eu a convencêssemos que essa história de caçada de onça era pra quem entendia muito do assunto.

Era dia de domingo e eu tinha acabado de almoçar. Minha véia tinha feito uma panelada de canela amarela daqueles taludos e eu, que tinha tomado umas duas – ou mais – da boa, entrei. Me fartei, pois o tempero da patroa era bão demais. Depois, o jeito foi "caçar" uma rede debaixo do pé de manga e puxar uma paia.

Passou um tiquim que eu havia deitado, tava ainda meio cochiloso e escutei o latido dos cachorros. Pensei: deve ser algum bando de macacos por perto. Mas, quando o Malhado latiu, vi que era gente chegando. Malhado era um cachorro muito inteligente e que nunca latia à toa. Pensei comigo, sem tirar o chapéu de cima da cara: isso é hora de chegar visita? Espero que não seja o compadre João Crente, que sempre chega em hora inoportuna com aquele mundão de livro e se põe a tentar convencer a gente a bandear pro lado da religião dele.

Fiquei quieto, esperando que fosse gente de passagem na estradinha perto da minha casa, mas logo ouvi minha patroa fazer aquele barulho de festa quando chega gente conhecida em casa. E eu do jeito que estava, fiquei. Só ajeitei mais o chapéu pra que pensassem que eu estava mesmo dormindo.

Mas de nada adiantou, não teve jeito: logo escutei o grito de Siá Ana, minha véia:

— Valdir, vem cá, Cumpade Zé e Cumade Telvina tão aqui.

Vixe, pensei, para eles virem aqui a essa hora do domingo, aconteceu alguma coisa grave. O jeito era levantar. E meio contrariado, respondi:

— Já vou.

Dei umas duas espreguiçadas e sem opção, me dirigi pro lado de casa, não sem antes enviar um olhar de tristeza pra rede: estava numa preguiça tão boa...

Cumade Telvina era daquelas mulheres inquietas. Falava alto e rápido. Assim que cheguei, logo depois que a cumprimentei, ela já disse:

— Cumpade, vim aqui pro senhor ir junto com o Zé caçar uma onça que tá pegando meus bezerros.

Eita, aí lascou tudo. Eu já tinha recebido tudo quanto é pedido pra fazer as coisas para os outros, mas caçar onça era a primeira vez. E o pior: a Cumade no pouco tempo que estava lá em casa já tinha convencido minha véia.  Meio ressabiado, dei uma olhada pro Cumpade Zé, que desviou o olhar para o chão, meio que querendo rir, mas veiaco com a possível reação da mulher. Minha veia disse:

— Meu véi, vocês nem precisam matar a onça não, é só passar um medo nela que logo vai embora. Só está reinando nos bezerros porque acha que não tem gente por perto.

Ora se onça é bicho de “passar medo”, pensei. Quando a bicha tá com fome ataca o que tem e se acha fácil, fica naquele oitão de mato pro resto da vida.

— Mas minha veia, nóis num tem nem arma, nem zagaia, nem nada. E esses cachorro daqui, se farejar o cheiro de uma onça, nem entra no mato.

Mas a Cumade já tinha a solução:

— Tem os cachorro do finado Jacó, é só ir lá pedir pra viúva Carmezina que ela empresta.

Aí eu vi que não tinha jeito mesmo. Ainda tentei argumentar:

— Mas, e as armas? Espingarda de repetição nós não temos, só de encher pela boca...

Aí, minha véia acabou com meus argumentos:

— Tem aquele revólver que foi do meu pai e a Garrucha Mão de Égua.

Aí que danou tudo: onde já se viu caçar onça com revólver e garrucha... De verdade tinha mesmo essa garrucha e o revólver que fora de meu finado sogro, só que tinha uns cinco anos ou mais que eu não punha a mão nele. Devia estar pura ferrugem. Já a Mão de Égua, vez em quando eu dava uns tiros com ela, mas era “de vez em quando”, pois eu não gostava de arma pequena. Devia estar igual ou pior que o revólver.

Preferi não contestar. Fazia dó a cara da Cumade Telvina, e minha véia, besta que era, se deixou levar por ela. Era ir pra cima dessa onça fosse como fosse, ou, para o lado que a Cumade dizia que ela estava, pra não ficar feio pra mim em casa. E até torcer para não encontrar a bicha braba.

Resolvemos que iríamos no outro dia pela manhã. A Cumade Telvina, ansiosa que era, ainda disse que dava tempo de ir hoje, pois onça não caça de tarde, devia estar até dormindo. Como se ela entendesse de caçar onça... Mas bati o pé e disse que hoje eu não iria, pois tinha almoçado muito e bebido umas talagadas de pinga, além do mais, precisava descansar, pois na semana que passou eu trabalhei no serviço pesado, consertando e refazendo algumas cercas e tava com o corpo todo doído.

Falei isso olhando direto pra minha véia, que me conhecendo bem, sabia que de jeito nenhum eu iria naquela tarde de domingo. E além disso, era preciso ir na viúva do finado Jacó, arrumar os cachorros e preparar as armas. Percebi que a Cumade Telvina não ficara satisfeita, mas para ela, não tinha outro jeito. Era pegar ou largar. Ainda procurou com um olhar incisivo e desafiador o Cumpade Zé de Anaia e ele todo sem graça olhava pro chão. Então, disse que era melhor mesmo deixar para o outro dia.

Dei mais umas duas espreguiçadas, fui no pote de água e bebi duas canecas cheias e buscando coragem onde eu não tinha, me pus a planejar a aventura da “Caçada de onça”. Rapidamente tracei um plano.

Nesse momento, Cumade Telvina já tinha montado na sua égua mansa e com a desculpa de fazer uma visita de pêsames se dirigiu para a casa da Carmezina, viúva do velho Jacó.

Chamei o Cumpade na casinha de guardar ferramentas e onde a gente cortava porco quando matava, pois lá dentro das fornaia eu tinha umas garrafas de pinga amoitadas. Aproveitei que estávamos sozinhos e expliquei meu plano a ele.

Disse em poucas palavras que a gente ia caçar a onça, mas não ia caçar a onça era nada. Eu sabia que os cachorro do finado Jacó já estava tudo desacostumado com esse negócio de caçar e conforme o resultado da visita da Cumade na viúva, era melhor nem levar.

Falei para o Cumpade como a gente ia fazer:

  Óia, Cumpade, a gente arreia os cavalos, vai até aquela Gameleleira assombrada, deixa os cavalo lá perto e entra um pouco dentro da mata, onde tem uns pé de Murici que depois dessas chuvas está tudo carregadin. E tudo madurin, madurin, que dá gosto. Depois, é só nóis dá uns tiros por lá e já volta logo, trazendo Murici pra colocar nas pingas e uns Pequi pra fazê com frango.

A gameleira que diziam ser assombrada ficava na entrada do talhão de mato e perto dela tinha uns pés de pequi erados, que davam frutos sadios e carnudos. Dava tudo certinho.

Veiaco e medroso, o Cumpade deu uma risadinha sem graça, tomou mais um gole de cachaça, preocupado se o melhor não era caçar mesmo a onça, pois a Cumade Telvina poderia desconfiar de nossa maçada.

Eu logo o desanimei:

— Ora, Cumpade, deixa de cisma, homi. Ela vai ficar é quieta, sabe que onça é bicho ladino e que com meia dúzia de vira-latas velhos e magros não adianta ir atrás.

Nessa hora, o Cumpade tava mais interessado em tomar outro gole, antes que a Cumade chegasse. Acertamos de sair na manhã seguinte quando o sol começasse a esquentar, depois de “tirar o leite”.

Taquei umas pingas boas nele, na esperança que amanhecesse de ressaca e desistisse da empreitada, pois eu havia dito que sozinho não iria. Mas, logo a Cumade Telvina chegou, deu uma olhada de soslaio para o Cumpade Zé, que deu um jeito de esconder o “cu de burro” onde tava bebendo da boa cachaça. E assim que a Cumade saiu de perto ele jogou o resto fora, não sem antes olhar com tristeza aquele desperdício. Aquela era mesmo uma pinga muito boa, que fazia tempo que estava guardada.

A Cumade voltou com a cara meio fechada dizendo que os cachorro do finado Jacó que sobraram – muitos morreram – foram dados a um cunhado dela, mas mesmo assim teríamos que ir, só que com os cachorros que tínhamos. Achei foi bom, pois além de não ter que passar na viúva Carmezina pra buscar a tal catervagem, seria mais fácil na hora de voltar. Falei para ela que não se preocupasse, bastava que o Cumpade trouxesse um cachorro dele e eu levaria o fiel e destemido Malhado, cachorro bom e obediente. Se um ou outro dos meus nos acompanhasse, tudo bem, pois eu sabia que quando nos distanciássemos eles desistiriam.

Aliviada, Cumade Telvina se despediu, não sem antes dizer que se eu quisesse, daria tempo de ir naquela tarde ainda. Fiquei foi calado....

De noite, depois que rezamos o terço e fomos deitar, notei que minha veia tava com ar preocupado. Não dei muita conversa, mas ela não resistiu e meio chorosa disse que arrependeu de ter concordado com a Cumade Telvina. Depois que ela foi embora, começou a se preocupar. Achava perigoso demais eu e o Cumpade Zé, dois homens sem experiência em caçada de onça. Procurei tranquilizá-la, dizendo que eu já tinha planejado como fazer, que daria tudo certo. Senti naquele instante uma certa ternura em seu olhar. Minha veia – Siá Ana – sempre esteve do meu lado, onde e como eu estivesse.

No outro dia cedo como de costume levantei para ir tirar o leite e quando ela foi levar café no curral para mim, disse que faria uma matula bem reforçada para mim e outra para o Cumpade. Concordei, pois imaginei que a Cumade Telvina não tivesse esse expediente de zelar do Cumpade Zé e ele, preguiçoso como era, bem capaz de não trazer nada.

Terminei de tirar o leite e fui arrumar minha traia. Quando peguei o revólver e a garrucha Mão de Égua vi que aquelas duas armas não teriam futuro na empreitada. Tavam que era pura ferrugem. No revólver o tambor onde se colocavam as balas não abria e a Mão de Égua com muito custo consegui destravar. Mesmo assim, tentei dar uma melhora, mas pouco ou nada adiantou. Não falei nada para minha véia, apenas coloquei na capanga e fui afiar meu facão – esse sim, eu sabia que não falhava nunca. Coloquei na cintura uma peixeira embainhada e bem afiada do meu uso e fui em busca de uma vara de guatambu, para que fizesse à maneira de uma zagaia – vai que a gente dava de cara com a tal onça.

Cumpade Zé chegou e foi dito e feito: como eu previra ele não trouxe nada pra merendar. Ainda bem que minha véia lembrara dele. Aquele coitado piava fino, sofria igual piolho na unha da Cumade Telvina.

Junto com as matulas coloquei meio escondido uns quatro sacos de aniagem e uma garrafa de pinga de engenho da boa. Chamei o Malhado e ele entendendo que a gente iria sair pra longe, se colocou ali perto de onde eu estava. Também apareceram e deram a ideia que nos acompanhariam dois viralatinhas do terreiro: Sabugo e Cupim. Eu sabia que esses dois logo desistiriam da viagem. Cupim era mais velho, mas Sabugo, que aparecera filhote na porteira da fazenda e fora adotado por Siá Ana, era corajoso e aprendia a cuidar do terreiro junto com o Malhado. Eram inseparáveis.

Finalmente, depois de ultimados os preparativos, montamos a cavalo e saímos com o sol já ardendo nas costas. A manhã estava bonita e o verde das capoeiras e pastos estava de encher os olhos. Já fazia uns quarenta dias que as primeiras chuvas vieram e de uma hora para outra a sequidão e o tom amarelado e cinza da vegetação deu lugar a um verde de várias tonalidades e muito vivo.

Apesar de estarmos no meio da manhã o ir e vir dos pássaros chamava a atenção. Lembrei que estávamos em plena primavera e os animaizinhos iam em busca de seus parceiros e parceiras para acasalar. O milagre da vida e da perpetuação das espécies acontecendo.

Cumpade ia calado, imaginei que fosse ressaca. Com mais de hora de viagem paramos em um pequeno córrego para beber e dar água aos animais que pelo calor que estava suavam bastante e claramente demonstravam estar com sede. Tive a certeza da ressaca do Cumpade quando ele deitou de bruços na beira do regato, molhou primeiro o rosto e depois a cabeça e sorveu demoradamente a refrescante e límpida água.

Ao levantar, perguntei se queria algo pra comer e ele disse que sim. Entreguei a marmita que Siá Ana fizera para ele, que me agradecendo, disse que não conseguiu comer nada cedo, pois amanhecera com o estomago ruim. Para não perder a piada ofereci um gole de pinga, mas ele fazendo uma careta, recusou de mediato.

Voltamos a nossa jornada e em pouco tempo avistamos ao longe a imensa gameleira que diziam ser assombrada, seguida do talhão de mata onde segundo a Cumade Telvina estava se escondendo a onça.

Essa mata, virgem e intocada, ficava nas terras do Cumpade e fazia divisa com as minhas. Era um lugar bonito, terra de cultura de primeira, com inúmeros e centenários pés de Jatobá, Tamboril, Cabreúva, Aroeira e outras grandes e imponentes árvores e rodeada por um pequeno cerrado onde prevaleciam os ipês, agora em suas últimas flores. Dava gosto apreciar aquilo tudo. Lá dentro havia duas nascentes que curiosamente corriam para lados distintos e formavam cada uma um córrego que ao longo do percurso recebiam água de pequenos regatos. Desses córregos, um ia para a propriedade do Cumpade Zé e outro para a minha. Chegamos na gameleira assombrada e apeamos dos cavalos. Dos cachorros que vieram apenas o Cupim desistiu no meio do caminho. Malhado e o pequeno e animado Sabugo nos acompanharam. Cumpade havia combinado de trazer um cachorro seu, mas não sei se esqueceu ou se não quis trazer. Resolvi nem perguntar, afinal, a gente não iria precisar mesmo...

Afrouxamos os arreios, tiramos a brida dos cavalos para que pastassem a grama verdinha do lugar e deixamos eles amarrados com uma corda longa, o que permitia que se movimentassem em curta distância.

Pequei os sacos que trouxe, entreguei um juntamente com o revólver pro Cumpade Zé que o colocou na cintura sem sequer olhar para a arma; e fomos em busca de Pequis e Muricis. Onça? Nem lembrávamos mais...

Combinamos que cada um iria para um lado para render o serviço de cata de Pequis e de Murici mas não ficaríamos muito longe um do outro. Estranhei que os cachorros acompanharam o Cumpade – Malhado não costumava se afastar de mim. Depois de tomar uma boa talagada, fui em busca do verdadeiro objetivo que me fizera deixar meu trabalho na fazenda e ir até ali: pequis e muricis.

Passando algum tempo, quando eu me refestelava com os frutos doces de um pé de Murici, escutei foi o pampeiro. Uma algazarra danada dos cachorros e gritos do Cumpade. Pensei alto comigo:

— É a onça!

Corri para o lado onde estava o barulho e ao me aproximar, vi o Cumpade e o Malhado tentando livrar o Sabugo das garras de um imenso Tamanduá Bandeira. Cumpade, certamente tentou atirar, mas o revólver, como eu sabia, não prestou. Restou a ele a opção de se aproximar do bicho, que insistia em abraçar mortalmente o pobre do Sabugo e bater o cabo do revólver no focinho do enfurecido Tamanduá. Naquele momento, talvez a única utilidade que poderia ter.

Sei que o tal Tamanduá deu um tapa para o lado do Cumpade, soltou o Sabugo que saiu ganindo alto e no gesto de volta quase rasgou a mão dele, quando passou as potentes garras no dito revólver e no ato tomou a então inútil arma das mãos dele. Porém, com a fúria que estava e o revólver preso nas garras o Tamanduá certamente apertou a arma e pela força que fez no gatilho, girou o enferrujado tambor e disparou um tiro que por pouco não acerta um de nós.

O barulho assustou o Cumpade, os cachorros e o bicho, que saiu em desabalada carreira quebrando tudo quanto é mato que aparecia à sua frente e a cada dois ou três pulos que dava em sua fuga disparava um tiro. Se contassem para mim, eu nunca acreditaria nessa cena: um tamanduá imenso, bravo, assustado, correndo e disparando bala pra todo lado.

O jeito foi esconder por trás de uma árvore que havia nas imediações, ato seguido pelo Cumpade Zé. Quanto mais corria, mais o bicho disparava o revólver. Até que parou, sinal que tinha soltado o revólver das garras ou acabado as balas.

Saímos no encalço do rasto do Tamanduá pelo “trieiro“ por onde ele tinha passado, mas nem sinal do revólver.

Pronto: tínhamos agora uma onça que comia bezerros e um Tamanduá armado.

Vi que a atitude do Cumpade salvara o pequeno e corajoso Sabugo, que recebera das unhas do Tamanduá dois cortes, felizmente não muito fundos, um nas costelas e outro na pá. Apesar de assustado, logo estaria bom. Como eu tinha sal na capanga, apesar de seus veementes protestos, passei na ferida, com o intuito de evitar infecção. Quando chegássemos à fazenda eu aplicaria antibióticos e antibicheira.

Ainda andamos pelas redondezas em busca de rastos da onça, mas nada encontramos. Fizemos isso com a certeza que com o barulho dos tiros disparados pelo Tamanduá a possibilidade de a danada estar ali perto era praticamente zero.

Mas o que falar em casa? Não matamos a onça e ainda perdemos o revólver. Sem contar que voltávamos cada um com dois sacos cheios de pequi e Murici. O jeito foi combinar com o Cumpade duas coisas: primeiro, que a gente tinha perdido o revólver quando os cachorros acuavam a onça. E depois que a história do Tamanduá atirador ficasse só entre nós, afinal, ninguém iria acreditar mesmo.

Aproveitamos o restante do dia e pegamos uma boa quantidade de Pequi e Murici e no meio da tarde, ainda a tempo de apartar os bezerros, chegamos à sede da fazenda.

Como combinado, contamos nossa versão da história

O fato é que nunca mais se ouviu falar de onça comendo bezerro naquele lugar. Acho que a danada viu a coragem do Tamanduá e resolveu migrar para lugares menos perigosos. Afinal, se onça tem medo de Tamanduá, imagina armado com um revólver calibre 38.

Mas bom mesmo foi com o passar dos dias, ouvir a Cumade Telvina gabar a coragem do Cumpade Zé, seu marido, que havia botado uma onça muito perigosa pra correr na unha e com um revólver velho e enferrujado. Aliás, às vezes ela dizia que achava mesmo era que ele tinha era matado a onça e não queria contar a história toda pra ela.

 



Outubro 2024.