sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

O MENINO DO VALE DE UM RIO QUE ERA DOCE




A manhã chegou diferente para aquele menino. Ele acordou estranhando e procurando a cama onde costumeiramente dormia, mas sentiu que estava em um local diferente. Procurou a cama ao lado da sua, onde dormia seu irmão mais velho, mas nada encontrou, percebeu apenas um amontoado de coisas. Não conseguiu entender o que era. Procurou ainda pela luz na janela que todos os dias vinha acorda-lo, mas viu apenas uma parede bege, fria e diferente.
Tentou reorganizar seus pensamentos e começou a se dar conta da tragédia que ocorrera no dia anterior. Lembrou o barulho forte, o cheiro acre da lama que descia no rumo de sua singela e humilde morada, onde vivia feliz com sua mãe, seu padrasto e seus irmãos e o momento em que nos braços da mãe, tiveram que correr em desespero para salvar suas vidas.
Lembrou onde brincava todos os dias e desenhava na areia fina, onde criava seus personagens, que viajavam nas estradinhas que construía para passar com o carrinho que ganhara ainda no natal anterior. E ele era cuidadoso com os brinquedos – poucos – que ganhava e que sempre eram seus companheiros durante todo o ano.
Dias antes da tragédia que se abateu sobre ele e sua família, pensara no que ganharia naquele natal. Via seu padrasto reclamar que as coisas estavam difíceis, que o pouco que ganhava mal dava para sustentar a família, no que era acompanhado por sua bondosa mamãe. Mãe que vivia trabalhando, que saía cedo em alguns dias da semana para “faxinar” as casas mais abastadas da vila. E ao fim da tarde, cansada, ia cuidar da pequena casa onde moravam, mas não sem antes pegar cada filho no colo e dividir seus beijos e carinhos. E o menino adorava sua mãe.
Lembrou que no natal anterior, umas pessoas diferentes e com ar bondoso estiveram em sua casa, onde deixaram alimentos e alguns brinquedos, dentre eles, o carrinho amarelo que tanto cuidava e com o qual brincava todos os dias.
E estava radiante, pois ouvira de sua mãe que no próximo ano iria para a escola da vila. Sonhava em estar naquela escola pintada de branco, com detalhes em azul, que tanto o encantava. Queria um dia estar ali. Tantas vezes perguntara à mãe quando é que poderia ir até aquele pátio, onde havia um frondoso flamboyant sob cuja sombra ficavam meninos e meninas, que fugiam do sol quente e ficavam a brincar. Passava ali diante da cerca do alambrado e se via debaixo daquela arvore, brincando, correndo... Sonhos de menino.
Ouviu vozes diferentes e voltou à realidade. Não estava em casa e de repente, viu sua mãe chegar amparada por pessoas que não conhecia. Ela tinha o semblante triste. Passou a noite toda em busca de saber noticias de seu padrasto e do irmão mais velho, que haviam desaparecido.
Sentiu ela abraça-lo forte e entendeu o motivo das copiosas lagrimas que derramava. Ouviu entre soluços, ela sussurrar: “meu filho, meu filho...”. E o menino também se emocionou e chorou abraçado à ela.
Vieram pessoas estranhas, um soldado com cara de assustado e os levou para uma grande mesa, onde havia muitas pessoas. Em silêncio, fizeram um lanche, tomaram um café diferente do que tomava todos os dias, como sua mãe colocava na mesa simples todos os dias.
Ouviu de algumas pessoas que não mais retornariam à suas casas. Elas não existiam mais, a pequena vila estava destruída.
A lama levara seu padrasto, um homem calado, mas bom e também seu irmão. Soube que estavam desaparecidos. Pouco entendia o que significava “desaparecido”, mas percebia que era motivo de tristeza.
Lembrou o terreiro onde fazia suas estradas imaginárias, do cãozinho “Muleque”, seu companheiro de alegrias, a casinha simples, a cama onde dormia, os brinquedos e as estradinhas de sonho, que ficaram para trás...
Onde outrora era o vale de um rio que fora doce, agora era retrato da destruição, de triste e amarga realidade. Realidade coberta pela lama...

E o menino sentiu que sonhar, de agora em diante, seria muito mais difícil.

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