O menino Tiê não gostava muito da época da Quaresma e da Semana Santa. As limitações impostas eram para ele verdadeiro martírio. Mas entendia e respeitava acima de tudo as ordens de seu pai e de sua mãe. Cumpria rigorosamente.
O que menos gostava era ter que deixar pendurado no alto, em um prego o seu estilingue, companheiro de todas as horas e o inseparável canivete, que ganhara do pai, com algumas recomendações quanto ao uso.
Por outro lado, seu pai também guardava, até deixava bem escondida a velha espingarda cartucheira calibre trinta e seis, muito útil naqueles rincões.
Acordava sempre bem cedo, mas logo ficava acabrunhado e cabisbaixo. Não podia ir até a roça de milho, nessa época já seco e prontos para a colheita, seu local ideal para a caça de passarinhos. Também não podia sequer cortar uma boa forquilha para mais um cabo de estilingue, que costumava manter sempre um bom estoque, trocando quase semanalmente. As boas eram de galhos de goiabeira, que não quebravam nem deformavam.
Também não podia gritar alto, brincar com suas irmãs, correr pelo imenso terreiro nem subir em arvores. Tinha que guardar bem o período, sob pena de castigos futuros.
No período da Quaresma na Fazenda Nova America não se matava nenhum animal, mesmo que fosse para comer. Do galinheiro utilizavam-se apenas os ovos.
E seus pais, fervorosos, não comiam carne de jeito nenhum durante todo o período da Quaresma. Ainda faziam jejum às sextas-feiras. O menino Tiê buscava explicações para aquele sacrifício todo, afinal seus pais trabalhavam muito. Pacientemente seu pai explicava, com base nos princípios religiosos.
Chegada a Semana Santa e o cuidado e as limitações se redobravam. Tempo de abstinência maior e ninguém na casa – nem adultos nem crianças – comiam carne.
Na Sexta-feira Santa, dia da Paixão de Cristo, o sacrifício era bem maior. Silêncio quase absoluto durante todo o dia. E por volta de uma hora da tarde, iam para a casa de seu avô, em outra fazenda bem próxima. Reunidos, tios, primos, vizinhos e amigos na grande sala, rezavam e faziam a Via Sacra. Em respeitosos e contritos momentos de oração, aos poucos iam, a intervalos regulares, vivenciando a história do martírio de Jesus. Tudo isso ia até por volta de dez horas da noite, quando voltavam para casa.
No dia seguinte era o Sábado de aleluia. O menino Tiê era bonzinho, quase não teimava, mas lembrava que agora teria que ser mais cuidadoso, pois durante a quaresma os pais não castigavam seus filhos, mesmo os mais danados. E no sábado de aleluia via muitos primos receberem corretivos por peraltices feias anteriormente.
No sábado de aleluia a alegria voltava na Fazenda Nova America. Era dia de festa. Matavam-se porcos, frangos e o violão dolente de seu pai voltava a trinar seus acordes.
De noite, novamente na casa de seu avô, hora de malhar o Judas e se refestelar com as delicias feitas por sua avó e suas tias. Hora de ouvir seu pai tocar violão e seus tios entoarem belas canções. Era assim o tempo da Quaresma e a Semana Santa na Fazenda Nova América.
Meu caro Paulo Rolim,
ResponderExcluirHoje é sexta feira santa. Nosso programa de seresta vai ao ar com sua crônica, gravada.
Em meio a "paixão de Cristo" dos tempos modernos, não há mais o sentimento cristão impregnado no coração da maioria das pessoas,infelizmente.Aquele ar de respeito e devoção que você tão bem descreveu na crônica.
Olho para Brasilia como se lá fosse o Império dos novos Césares e consigo enxergar vários Judas, Pilatos e mensaleiros de plantão à espreita do momento portuno para agir. Olho para o céu azulado de Goiás e vejo aviões da Varig abatidos com covardia,cinismo e falta de pudor....
Diante dessas delilusões tão próximas, em plena Semana Santa, queria ser o menino Tiê. Apenas isso!
Parabéns, amigo.
João Sobreira Rocha