Quinzin nunca teve uma vida fácil. Mais novo de uma
família de cinco irmãos, ficou órfão de mãe quando tinha sete anos.
Moravam em uma casa simples, pequena e velha, em um
talhão de terras pertencente ao Sr. Jessé Capistrano, fazendeiro e grande
criador de gado da região.
Vez em quando revive os momentos de pesadelo, como
quando os irmãos foram “dados” pelo pai a gente desconhecida, de maneira brutal
e repentina. A exceção foi Dé, que resolveu fugir, depois de um ataque de fúria
do pai.
Naquela manhã não teve vontade de levantar-se da
esteira onde dormia. Mas chamado pelo pai, não teve alternativa. Com muito
esforço se levantou, tomou a bênção do pai e buscou olhar para a estradinha que
saia da casa onde moravam e ia em direção à estrada maior, como a buscar
vestígios dos irmãos.
Passou diante do jirau que improvisavam como mesa,
ouviu do pai um “come logo, que vou te ensinar o serviço”. Com o
coração apertado e sentindo um nó na garganta não queria comer, mas sabia que
se não o fizesse a possibilidade de apanhar era grande. Ainda assim, pegou um
pedaço de tapioca e começou a mastigar, sorvendo o leite quente no copo de
lata. Entendeu que teria que assumir as funções que o irmão fazia, como varrer
a casa, o pequeno terreiro e dar milho às galinhas.
Não quis perguntar ao pai pelos irmãos, temia uma
resposta bruta ou mesmo alguns tapas. Ouviu de maneira vaga o que tinha que
fazer e viu o pai sair apressado para o eito, onde trabalhava. Quinzin não teve
dificuldades em executar os serviços, pois sempre observara os irmãos fazendo e
até os ajudava.
Com saudade lembrou dos momentos de alegria, quando
após as obrigações, ele e os irmãos costumavam brincar, correr no pequeno pasto
que ficava em frente à casa. E quando se punham a observar as nuvens no céu,
como mudavam de forma, sugerindo animais, pássaros ou arvores. “Aquela é a
minha”, dizia um, logo retrucado pelo outro: “E aquela grandona é minha. Ganhei
de você!” E riam, com toda a pureza e inocência de crianças que, apesar das
adversidades que a vida trouxera muito cedo e da brutalidade do pai, eram
felizes pelo amor que os unia. Tinham um ao outro, e isso significava muito.
Agora, era somente ele e o pai naquele canto do mundo.
Era terminantemente proibido de sair de casa ou de conversar com pessoas
estranhas. Com o tempo, começou a conversar sozinho, e um dia o pai percebendo
isso, o chamou de “Aluado”. Não sabia o significado daquela palavra, mas
entendeu como um elogio. Começou a conversar mais e mais, até que percebeu o
erro que cometera: o pai chegando da roça, em uma tarde quente viu que ele
conversava e foi ver com quem seria. Percebeu que falava sozinho e recebeu os
gritos e berros do pai, que dizia que não criaria filho louco. Olhou para o pai
e não teve tempo de desviar da dolorosa e violenta lapada que o pai lhe deu com
o pedaço de couro que fazia as vezes de cinto. Levou uma, duas, três e na
quarta caiu no chão, perdendo a conta de quantas chibatadas levara e sentindo a
quentura da urina que involuntariamente fizera nos trapos que usava como roupa.
Viu que o pai levantara o braço para outra lapada,
desta vez muito mais forte, mas percebeu que alguém chegara em frente à casa, o
que fez com que o pai arrefecesse de sua fúria. Ficou ali, jogado no chão,
percebendo que pela mudança de voz do pai, que se tornara humilde e servil, era
alguém importante havia chegado.
Tentou se levantar, sentindo o sangue escorrer em suas
pernas, parecendo que um batalhão de formigas de fogo o atacara. Reuniu forças
e se dirigiu a um pequeno tronco de madeira que improvisavam como banco, onde
sentou. Sentiu a aproximação de alguém montado a cavalo e viu um senhor bem
vestido, que olhou para ele balançando negativamente a cabeça, mas que não
disse nada. Sentiu naquela figura uma certa proteção.
Ficou ali, quieto, vendo a tarde cair e a noite
chegar, até que o pai o chamou, desta vez com a voz mansa, dizendo que fosse
tomar banho e passasse água de sal nos ferimentos. Sem olhar para o pai, se
perguntou o motivo daquela maldade, daquela judiação que sofrera. O pai nunca
batera nele daquele jeito, apenas dava tapas que doíam, mas não tirava sangue
como desta vez. Obedeceu ao pai, que preparou uma salmoura e mesmo sentindo
imensas dores, se lavou e foi se deitar.
Na pequena e velha esteira não conseguia dormir. As
dores nas costas e nas pernas e braços feridos o impediam de se mover. Não
encontrava posição que oferecesse o mínimo de conforto para receber o amigo
sono. Ouvia o barulho da noite, o canto dos curiangos e outros sons que
normalmente o acalentavam, mas daquela vez sentiu que dificilmente conseguiria
adormecer. Ouviu o pai tossindo, e novamente veio à lembrança o ocorrido
naquela tarde. Por qual motivo o pai o ferira tanto? Por que ele não pediu para
que não mais conversasse sozinho? Afinal, era obediente e não tinha o costume
de teimar ou responde ao pai.
Adormeceu de cansaço e às primeiras luzes do dia, viu
o pai ir em direção ao riacho para tomar banho. Assim que o pai voltou, apesar
das dores levantou e foi dar início à sua rotina diária. Tomou a benção do pai,
que respondeu baixo e foi tomar uma xícara de leite com cuscuz de milho.
Depois saiu de dentro de casa e foi colocar água e
dar o milho às galinhas. Viu o pai ir para o trabalho, sem o costumeiro hábito
de deixar as ordens, o que era para fazer e como fazer.
Sentiu-se só e abandonado. Mas era preciso seguir e
ainda sem entender o motivo que o pai fizera aquilo, deu sequência as suas
obrigações.
Passou o dia cuidando para que mosquitos e moscas não
se aproximassem dele e a noitinha, novamente percebeu a presença daquele senhor
que, montado no cavalo, tinha uma imagem imponente, diante da qual seu pai se
derretia em mesuras e suavidade na voz.
Ouviu ele perguntar sobre “o menino”, se estava melhor
e dera conta do serviço do dia. Sentiu o coração bater mais forte e quase
perdeu o fôlego: aquele homem perguntava por ele. Será que seria “dado” como
foram seus irmãos?
Ficou ali no banco e ouviu os passos do cavalo e a
presença do cavaleiro. Ao vê-lo sentado no tronco que servia de banco,
perguntou a ele:
— Como está, menino?
Sentiu medo, baixou a vista e a voz não saía; até que ouviu o pai delicada e suavemente dizer:
—Responda ao senhor Jessé!
Novamente
tentou, mas a voz não saiu, o máximo que conseguiu fazer foi balançar a cabeça
em sinal afirmativo, de maneira tímida e com os olhos no chão. Não conseguia
olhar para aquele homem que montado no cavalo, parecia um gigante que ia do
chão até o céu.
Ouviu o pai justificar que ele era calado mesmo e viu o homem sem se
despedir, dar meia volta com o cavalo e sumir em direção a estrada principal.
Ficou ali um pouco até que o pai o chamou, chamando-o
para o banho com salmoura e uma mistura de ervas com casca de barbatimão,
segundo ele, para curar as feridas. Notou que o pai estava com a cara boa, ao
contrário do que era normal. Ele mesmo passou a lavar as feridas e embora
calado, o tratou com cuidado e após o banho, deu para ele vestir uma peça
de roupa desconhecida. Ficou um pouco folgada para seu corpo franzino, mas
ainda assim ele vestiu, junto com a costumeira camisa surrada e cheia de rasgos,
mas que ele gostava de usar.
Mesmo sem sentir fome, jantou e ficou por ali, calado como sempre observando
o pai fumar seu cigarro de palha. Não demorou, sentiu o peso do sono e foi se
deitar. Pediu a bênção ao pai e se dirigiu a esteira no chão. A mistura de
ervas com água de sal que o pai passara fizeram efeito e logo ele adormeceu,
sonhando com os irmãos e com aquele homem do cavalo, que o chamava para que
percorressem os recantos e pastos da fazenda.
No outro dia, levantou e a costumeira rotina: lavar o
rosto, tomar leite e comer cuscuz com nata. Ele estava animado, como se algo de
bom estivesse para acontecer. Viu o pai se dirigir para o trabalho, tendo antes
feito as recomendações de costume.
Ficou ali quieto,
olhando para a estrada e se divertindo com os passarinhos que ciscavam em
alegre e barulhento folguedo nos pequenos trecho de areia depositadas no
caminho. Depois de algum tempo, buscou o milho no pequeno paiol e foi dar para
as galinhas, que já se concentravam ali à porta da cozinha.
Viu surgir uma
galinha que estava sumida, com muitos pintinhos, todos espertos, amarelinhos e
se postando sempre sob a mãe que com seu jeito característico, os chamava,
avançando sobre as outras galinhas, garantindo a ela e aos pequenos seu quinhão
de milho e farelo.
O dia passou sem
novidades. Por longo tempo ficou olhando para o céu, imaginando que os irmãos
poderiam estar ao lado dele, e em pensamento, brincava como se não estivesse
só. Evitava falar, pois de repente seu pai poderia chegar e novamente dar outra
surra como aquela que ele ainda carregava as feridas.
À tardezinha, o pai
chegou e perguntou algumas coisas, disse que iria reformar o chiqueiro pois
iria trazer um leitão para engordar e depois, reforçar as latas de banha da
cozinha. Quinzin lembrou que foi o irmão quem cuidou dos últimos porcos que
criaram e agora, seria ele. Teve medo, pois o chiqueiro ficava longe da casa e
com frequência viam cobras passando por lá. Mas ficou calado e preferiu esperar
os acontecimentos.
Novamente, tiveram a
visita do Sr. Jessé, que sempre montado no cavalo perguntou algumas coisas a
seu pai; e como da outra vez foi até os fundos da casa, falando com ele, que
desta vez respondeu, embora com um monossílabo.
— Tudo bem, menino? Perguntou o fazendeiro.
—Tô... Respondeu Quinzin, de olhos baixos e quase em
um sussurro.
De soslaio, percebeu
que o pai abrira um leve sorriso, algo raro de se ver. E o Sr. Jessé deu meia
volta e sumiu em rápido tropel pela estrada.
Mais tarde, o pai o
chamou e examinou as feridas, dizendo que estava quase bom e bastaria mais
aquele banho com ervas e que as feridas estavam fechadas.
Quinzin logo foi se
deitar, demorando um pouco mais a pegar no sono. Novamente, os barulhos da
noite, canto de curiangos e de grilos. Até que adormeceu, sonhando novamente
com o Sr. Jessé.
No dia seguinte, ao
se levantar, tomou a benção ao pai que pediu que mostrasse as perebas. Depois
de ver, disse que não precisava mais de cuidar com as ervas. Estavam quase
boas, disse.
De supetão, disse
que o Sr. Jessé queria levá-lo para trabalhar na sede da fazenda. Era serviço
pouquinho, apenas ajudar a molhar alguns canteiros na horta, cuidar das
galinhas e se sobrasse tempo, ajudar na cozinha. E fazer o que Dona Santa,
esposa do Sr. Jessé lhe pedisse.
Estremeceu ao ouvir do pai que se soubesse de alguma
malcriação dele ou sinais de preguiça que viessem reclamar, daria outra surra
pior que aquela que ele ainda curava as feridas.
Sentiu o peito
apertado, e o que talvez poderia ser motivo de alegria, se perdeu ante a
iminente ameaça de violência, que não seria difícil de acontecer. A ameaça
ensejou preocupação naquele coração tão pequeno, mas forte. Lembrou da surra
recente e sentiu novamente as dores do relho a cortar suas carnes magras. Mas,
apesar da pouca idade e do medo que sentiu, permaneceu calado, sem demonstrar
emoção ou manifestar preocupação.
Triste história do Quinzin e suas labutas como órfão de mãe e as
brutalidades do pai
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