Quinzin acordou com o chamado do pai, um grito alto e
brusco.
— Levanta, moleque, que hoje você vai para a sede da
fazenda.
Quinzin demorou um pouco a entender, mas ficou alegre.
Apesar de desconfiado e com receio, começou a imaginar como seria o dia a dia
na fazenda do Sr. Jessé Capistrano.
O pai estava apressado naquela manhã. Rapidamente fez
a marmita de almoço que levava para o eito onde trabalhava e determinou que o
menino comesse logo.
Quinzin se virou como pôde. Rapidamente lavou o rosto,
comeu o beiju ainda quente e vestiu uma roupa limpa. Viu o pai desligar o
rádio, com o barulho característico e fechar as portas e janelas. Sem demora,
estavam a caminho da sede da fazenda. E o pai aquele dia estava com o passo
mais apertado.
Chegaram à imponente sede da fazenda e foram recebidos
pelo Sr. Jessé, que Quinzin já conhecia de vista. Trocaram poucas palavras e o
fazendeiro chamou uma senhora, que atendendo ao chamado, recebeu orientações e
levou Quinzin para o interior da residência. Passaram pela sala, com mobílias
que nunca vira igual, até que chegaram em uma ampla cozinha onde algumas
mulheres com lenços na cabeça cuidavam do almoço. A senhora, que tinha uma voz
suave e agradável chamou uma das mulheres e disse:
— Helena, este é o menino que veio para ajudar. Cuidem
bem dele e não o deixem se afastar da vista de vocês. E digam o que ele deve
fazer.
— Ele parece bonzinho, obediente, disse uma das
mulheres.
— Vem aqui, menino.
Helena, com quem Quinzin simpatizara de imediato,
perguntou se ele já havia comido algo naquela manhã, ele respondeu que sim.
— Tadinho, tão pequeno, disse Helena. E o que são
essas marcas? Seu pai te bateu?
E se escandalizou:
— Vejam aqui, olha só o estado desse pobre.
Quinzin sentiu a boca seca, o corpo formigar e as
pernas tremerem ao sentir os diversos olhares sobre ele. Não sabia se podia ou
não contar a verdade sobre a surra que levara. Limitou-se a baixar a cabeça,
com os olhos cheios de lágrimas.
Helena maternalmente, pegou Quinzin pela mão e o levou
até uma mesa cheia de iguarias, muitas que ele não conhecia. Ordenou que
sentasse e disse:
— Come, menino. Você precisa se alimentar bem, pois
terá muito trabalho pela frente.
Trouxe uma xícara com leite e um pouco de açúcar e
alguns biscoitos, colocou á frente dele, que timidamente começou a beber e a
comer.
Ficou ali algum tempo, esquecido. As mulheres
continuaram seu serviço na cozinha e vez ou outra, Dona Santa vinha ali para
verificar o andamento dos trabalhos. Passou por ele, mas apenas olhou, sem nada
dizer.
Depois de certo tempo, o Sr. Jessé apareceu. Deu a ele
um naco de rapadura e ordenou que o acompanhasse. Perguntou sobre seus irmãos,
sobre seu pai, mas Quinzin, tímido, pouco sabia dizer.
Levou-o até uma grande horta onde mostrou um balde
pequeno e outro recipiente – um regador. E perguntou a ele se daria conta de
molhar os canteiros. Quinzin disse que sim, e para que o fazendeiro soubesse de
sua agilidade, foi até o rego d’água e pegou um pouco de água, colocou dentro
do regador e foi molhar algumas plantas em um canteiro próximo.
Seu Jessé ficou satisfeito com a atitude do menino.
Disse que passaria algumas tarefas para que ele molhasse o que desse conta até
a hora do almoço e saiu. Quinzin tratou logo de fazer o que lhe fora ordenado.
A horta era um lugar magnifico, de imagens, vida e
aromas. Cercada de tela grossa, com um portão de acesso no rumo da casa e
diversos canteiros de alface, cheiro verde, pés de pimenta e alguns pés de
mamão (mamoeiros) carregados do meio até em cima. Tinha ainda em um dos lados
da cerca imensos pés de chuchu carregados de frutos de todos os tamanhos, dos
mais tenros aos que estavam em ponto de colheita.
Em um canto eram cultivadas plantas de variadas
espécies como arruda, erva-cidreira, capim santo, boldo, alfavaca, funcho,
hortelã e outros usados em meizinhas para atenuar e acalmar os males que
afligiam os moradores da fazenda. Mais longe, no outro extremo, encostado à
cerca um monte com esterco de gado curtido que servia para adubar a
plantação.
O Sr. Jessé havia passado como tarefa para ele molhar
cinco canteiros grandes. Quinzin achou fácil o serviço e alegre e animado se
pôs a fazer o serviço. Molhava com cuidado, para que ficasse bem feito. O balde
era pequeno, mas, por outro lado, se tinha que dar mais viagens entre o rego
d’água e os canteiros, era mais leve e cansava menos.
Nesse ritmo não demorou e terminou. Olhou com certo
orgulho para os canteiros e se sentiu feliz. Ouviu barulho de alguém que se
aproximava e viu que era Dona Santa. Ela veio até onde ele estava, olhou com
atenção os canteiros que ele havia acabado de molhar e disse:
— Ficou muito bom seu serviço. Vai lavar as mãos e vem
comer alguma coisa e depois você volta e continua.
Antes de saírem, Dona Santa recolheu algumas ervas e
verduras dizendo que eram para o almoço. Seguiram em direção à cozinha e lá, na
mesma mesa, uma farta e generosa merenda o esperava. Biscoitos de forno, alguns
que ele não conhecia, e um copo de leite.
Tímido que era, comeu pouco, mas dona Lena, que
cuidava da cozinha veio e disse que ele comesse bem pois estava muito magrinho
e precisava ficar forte. Então, deixando a timidez de lado, aproveitou e se
esbaldou. Estava gostando demais daquele lugar; mas sabia que tinha que voltar
logo ao trabalho e se apressou em terminar a merenda.
Ao chegar na horta se deparou com dona Santa, Seu
Jessé e um rapaz alto, conversando. Ficou quieto, como que não querendo ser
visto, porém dona Santa o chamou, a apresentou o rapaz alto:
—Quinzin, este é Dimas, ajudante na fazenda e vai te
ensinar direitinho o serviço.
Quinzin reconheceu aquela voz. buscou na memória, e
lembrou do palhaço da festa da Folia do Divino que o pegara nos braços e o
elogiara.
O trabalho era bem simples, além de cuidar da horta,
colocar milho e farelo para as galinhas e colher os ovos.
— Não se preocupe, rapaz, aos poucos você vai
aprender.
Pegou um cesto e entregou a Quinzin. O cesto era um
pouco grande e Quinzin teve certa dificuldade em carregá-lo, o que foi notado
pelo rapaz.
Dimas voltou a horta e trouxe o balde que Quinzin
carregara água para encher o regador e disse:
— Por enquanto você usa esse, até o patrão arrumar um
cesto ideal para o seu tamanho. E tem que que fazer esse serviço duas vezes ao
dia.
Foram em direção ao galinheiro. Quinzin se encantou
com a quantidade de galinhas, pintinhos e frangos e galos. Mais adiante, uma
cobertura com vários nichos forrados com palha de arroz, onde as galinhas
botavam os ovos. Dimas pediu que tivesse cuidado para não quebrar nenhum ao
recolher.
No começo, pegava com medo de deixar cair, mas aos
poucos se acostumou e passou a ter maior segurança e consequentemente, rapidez.
O rapaz era rápido e logo os dois estavam com seus respectivos recipientes
cheios de ovos brancos e azuis. Ainda encheram mais um cesto e foram em direção
à grande cozinha, onde deixaram os cestos sobre uma mesa.
Depois, foram para a horta. Hora de terminar de molhar
o restante dos canteiros e com as mãos arrancar as pequenas ervas daninhas, que
pareciam querer tomar conta de tudo. Aos poucos, foi limpando.
O tempo foi passando, o sol esquentando e Quinzin
sentiu sede. Foi até o rego d’água e sorveu boa quantidade. Foi quando Dimas o
chamou para o almoço. Estava na hora. No rego d’água, lavou as mãos e os pés, o
que foi feito também pelo companheiro de trabalho e subiram em direção a casa.
O local onde os trabalhadores almoçavam ficava por
trás da cozinha em uma das amplas varandas que cercavam a casa. Eram várias
mesas de madeira que juntas formavam uma só, ladeadas por grandes bancos.
Na cozinha e na varanda, sobre os fogões à lenha e
mesas, grandes panelas de ferro e de barro com carne, feijão e algumas cuias de
coité cheias de verduras como alfaces e outras que Quinzin ainda não conhecia.
Em uma mesa menor, próximo às panelas ficava uma pilha
de pratos e colheres, onde Dimas pegou um para ele e outro para Quinzin e foram
servir a comida. Aos poucos foram chegando trabalhadores e logo o local estava
cheio e com o vozerio dos homens que conversavam alegremente.
Era época de limpeza e recuperação de pastos e era
grande o número de trabalhadores eventuais. Muitos trabalhavam constantemente
na fazenda e outros eram empreiteiros que trabalhavam somente em determinadas
épocas do ano.
Quinzin comeu satisfeito, adorando a comida. Era bem
diferente da que tinha em casa, sempre com carne de porco, feijão e farinha.
Vez ou outra, um macarrão, mas o trivial era esse. E ali Quinzin comeu arroz,
iguaria que adorava, e que não tinham o hábito de fazer em sua casa.
Após o almoço, um breve descanso ali mesmo, diversos
homens olhando para aquele menino, alguns tecendo comentários, mas Quinzin
ficou quieto, esperando as próximas ordens.
Estava feliz. Como eram boas aquelas pessoas.
Deram-lhe muita comida, em nenhum momento gritaram com ele e o companheiro de
trabalho, Dimas parecia ser um rapaz tranquilo, que falava pouco, mas não se
importava de lhe ensinar o serviço com calma e paciência.
Dimas disse a Quinzin para voltar para a horta e
continuar a limpar o mato dos canteiros que ele iria dar uma ajuda no curral,
onde os vaqueiros estavam cuidando do gado.
O menino voltou para a horta e continuou de onde tinha
parado. Volta e meia para um pouco para esticar o corpo franzino, bebia água no
rego que corria ali pertinho e não raras vezes se encantava com os beija-flores
que a todo momento vinham visitar o lugar. Também apareciam por ali rolinhas,
bem-te-vis e outros que ele não sabia o nome.
O tempo foi passando e o sol já dava sinais que a
tarde começava a se acabar. Foi quando dona Santa o chamou pelo nome, dizendo:
— Vem, Quinzin, chega por hoje. Vai lavar as mãos e
vem comer um pouco antes de ir para sua casa.
O menino obedeceu e após se lavar a seguiu em direção
à cozinha que a esse momento estava vazia. Certamente as mulheres que lá
trabalhavam tinham ido para suas casas ou foram cuidar de outras obrigações.
Quinzin admirou aquele silêncio. De manhã o local era
bastante movimentado e nervoso, com as mulheres no seu ir e vir, barulho de
panelas, fogo e muita agitação. Quinzin comeu o que Dona Santa o oferecera
Ainda ouviu ela dizer: “Meu Deus, como está magrinho e
judiado esse menino...”
Quinzin ao sair da cozinha, ainda no corredor, deu de
cara com o Sr. Jessé, que lhe perguntou se gostara do trabalho. Timidamente
respondeu, de olhar baixo:
— Gostei.
Seu Jessé disse então que ele fosse para casa, que era
perto e que não tivesse medo. Qualquer coisa que acontecesse, gritasse alto,
que ele escutaria.
Quinzin estava temeroso sim de voltar sozinho para
casa. Sempre andou acompanhando do pai ou dos irmãos. Mas era preciso ter
coragem e seguir de volta para casa. E tinha mesmo que se acostumar, afinal, o
pai não viria buscá-lo todos os dias.
Estava feliz. Fora tratado como talvez nem lembrasse
mais. Ternura, carinho e aconchego foram coisas que só conheceu quando teve a
mãe por perto. Todos os dias após ele e os irmãos tomarem banho, ela vinha toda
cuidadosa e amorosa pentear os cabelos dos filhos. E após todos estarem
vestidos e penteados, dava beijos de carinho em cada um e não raro dois, três
irmãos disputavam seu colo, em alegre e feliz momento.
A maneira que Dona Santa e Seu Jessé o trataram o
surpreendeu. Dona Santa tinha um semblante de mãe que cuidava muito dos filhos
e sua voz suave o deixava seguro, apesar da adversidade que a vida lhe trouxera
até aquele momento. Foi imerso nesses pensamentos que não demorou e estava
chegando na humilde e simples casinha onde morava.
Era preciso cuidar das galinhas e do pequeno
porquinho. Depois, aguardar a chegada do pai para irem tomar banho no riacho e
depois jantarem.
Após colocar a comida para o porquinho, que o recebeu
com sua tradicional saudação, com gritos e roncos altos, com muito barulho.
Quinzin se permitiu ficar olhando o pequeno riacho e seus peixinhos, que com a
luz do sol da tarde pareciam pequenos fachos de luz a deslizar para lá e para
cá.
Novamente, veio aquele nó na garganta ao olhar para o
lado da mata onde Dé desaparecera. Sentiu uma mistura de revolta e saudade.
Onde estava Dé? Onde estavam seus outros irmãos? Será que estavam bem, tinham o
que comer e onde dormir? E será que não estavam judiando deles?
Sentou-se no pequeno tronco que improvisava como banco
e viu a tarde cair, cheio de saudade e recordações. Ouviu barulho para o lado
da estrada e percebeu que o pai estava chegando. Sentiu um calafrio e as pernas
tremerem. Era a dura realidade de volta, com a qual por algumas horas se
esquecera e até desacostumara.
O pai já entrou e gritou por ele. Ele correu e
respondeu ao pai, que perguntou como fora, se não dera trabalho e se obedeceu
direitinho aos patrões. Quinzin respondeu que sim, de cabeça baixa e tímido.
— Vou perguntar ao Sr. Jessé. Se eu souber que você
está aprontando, te quebro no pau, moleque.
Quinzin ficou calado. Sabia que o pai era bruto,
agressivo e era melhor nada responder. E calados, como se não notassem a
presença um do outro, se dirigiram ao riacho para tomar banho. Antes do banho,
o pai foi até o chiqueiro e olhando demoradamente para o porquinho, disse:
— Mais um mês e esse bicho estará pronto para abater.
Já tá ficando gordinho.
Quinzin ficou triste, com o destino do alegre e
barulhento porquinho, mas não se manifestou.
Depois, cada um pegou um balde com água – Quinzin com
um menor – e subiram em direção à casa.
Chegando em casa o pai ligou o rádio, que trazia
animação e um homem que falava coisas engraçadas, seguidas de um coro de
risadas. Vendo a curiosidade do filho, que fitava o rádio, o chamou para fora
da casa e disse:
— Tá vendo aqueles fios ali? Disse mostrando os fios
que, saiam do rádio e ultrapassando o telhado e se dividiam, esticados entre
duas grandes e altas varas de bambu fincados na lateral da casa, de um lado a
outro.
Quinzin mirou os fios sem entender muito o que o que
ele dizia. Continuou:
— Você deve estar pensando que tem gente dentro do
rádio, né?
— Sim, assentiu Quinzin, balançando a cabeça.
O pai riu, algo que raramente fazia e disse:
— Não tem ninguém dentro do rádio. O que você ouve,
sendo gente falando ou as músicas que passam, são feitos bem longe daqui. São
mandadas para todo lado, e chegam aqui em ondas, como o vento. Os fios, são as
antenas que “pegam” o que enviam e sai no rádio, aqui dentro, quando é ligado.
Quinzin entendeu mais ou menos, mas ficou aliviado.
Pelo menos, não tinha miniaturas de pessoas ali que poderiam sair quando eles
estivessem dormindo para beber água, comer o pouco alimento que tinham e outras
coisas mais. Lembrou que diversas vezes acordou de madrugada e ficou com medo
de encontrar pela casa algum daqueles “homenzinhos” que viviam dentro do rádio.
Enquanto o pai ouvia música e ensimesmado fumava seu
cigarro de palha, Quinzin dirigiu-se ao fogão à lenha e remexeu as brasas
adormecidas, cobertas de cinza, colocando sobre o borralho alguns gravetos que
se encontravam ali perto, e assim que o fogo pegou, buscou no terreiro dois
pedaços de lenha e colocou sobre as lavaredas que logo cresceram e o fogo logo
ficou vivo, iluminando toda a cozinha.
Depois disso pegou uma velha panela, com o exterior
preto de carvão e colocou sobre as chamas na chapa do fogão, foi até a
prateleira e com uma concha pegou uma porção de carne de porco que estava
dentro de uma lata e colocou dentro da panela velha, que fez aquele chiado,
barulho característico de carne e gordura na panela quente. Logo, estava pronto
o jantar, que constava de carne de porco com farinha e pedaços de mandioca que
já estavam cozidos.
Com cuidado, tirou a panela com a carne de cima da
chapa e colocou de lado. O pai, que
estava de olho em seus movimentos e se aproximou, recomendando que ele estava
fazendo tudo direito, mas que não se descuidasse, pois era perigoso se queimar.
Após o pai se servir, colocou a comida em seu prato,
velho prato esmaltado e sentou em um pequeno e carcomido banco de madeira que
ficava na cozinha.
Com um velho pedaço de tecido que de vez em quando
fazia as vezes de pano de cozinha, forrou o colo e colocou o prato sobre ele,
evitando assim que se queimasse. Começou a comer, lenta e calmamente. Adorava
aquela comida simples, era tão bom quanto fosse um lauto banquete. Lembrou da
comida da casa do Sr. Jessé, da fartura que era lá. Era muita gente para comer,
mas parecia que nunca faltava alimento naquela casa.
O pai, adivinhando seus pensamentos, perguntou como
fora lá, se tinha achado difícil o serviço, e se não aprontara alguma desfeita.
Quinzin respondeu que fora bom, que o serviço era
fácil. Achou que ele ia continuar a conversa, falar mais alguma coisa, mas
continuou calado, talvez prestando atenção no rádio que trazia canções alegres.
Terminando de jantar o pai foi até o pote, bebeu água e voltando-se pra
Quinzin, disse em seu habitual tom ameaçador:
— Se você aprontar na casa do Seu Jessé, já sabe....
Quinzin ouvindo isso, quase se engasgou com a comida.
Mas manteve-se quieto, calado, apenas baixou os olhos fitando o chão sujo da
cozinha. Mas, não tremeu as pernas, ou sentiu terror como outras vezes. Seu dia
fora bom demais, vira que existia outro mundo onde pessoas bondosas o tratavam
bem.
Viu o pai acender o cigarro de palha em um tição de
lenha do fogão e ir para fora da casa “pegar uma fresca”, como dizia. Quinzin
permaneceu onde estava, com o olhar fixo nas brasas do fogão, que aos poucos
iam perdendo a vivacidade. Das animadas e intensas lavaredas de há pouco,
ficaram somente as brasas, que depois de passarem por um tom vermelho vivo,
como as nuvens no céu ao entardecer foram aos poucos diminuindo a intensidade,
até que o branco das cinzas prevalecesse.
Inconscientemente, viu naquele fogo sua vida. Quando
tinha a mãe e os irmãos, era fogo vivo, alegria, agora, sozinho, ou quase
sozinho, pois tinha ainda a companhia do pai que não representava alegria ou
amor, sentia-se como brasa em vias de virar cinza.
Sentiu o cansaço chegar. O dia fora intenso, cheio de
novidades e descobertas. Era inegável que um mundo novo, até então
desconhecido, se apresentava, afinal, conhecia poucas pessoas, poucos lugares e
seu mundo até há pouco tempo limitava-se à casa simples onde moravam, o
convívio com os irmãos e com o pai. Da mãe tinha poucas lembranças, que sempre
estavam presentes em seus sonhos ou momentos de alegria. Eram poucas as
recordações, mas suficientes para acalentarem o coração de um menino de apenas
oito anos, que a vida jogara em um mundo até então cruel e desumano.
Foi até o pai que continuava do lado de fora e
pediu-lhe a bênção e se dirigiu até a esteira, onde deitou o corpo franzino e
esperou o sono tomar conta. Mas, o sono teimava em demorar a chegar.
As canções do rádio o mantinham atento, e mesmo depois
que o pai desligou e se recolheu, começou a prestar atenção aos barulhos da
noite. Canto de grilos, um ou outro uivar de lobos, o ritmado e constante canto
dos curiangos e outros sons que ele acreditava serem das estrelas.
Acordou com o barulho do pai abrindo a porta e
chamando as galinhas para a ração de milho diária. Acordou feliz, pois sabia
que em pouco tempo estaria em um lugar que gostara, e onde havia muita gente
que o tratara bem.
Tratou de lavar o rosto e comer o cuscuz que o pai
fizera. Pediu a bênção, e ouviu dele apenas um “bençõe”. Mais nada. Logo estava
pronto e em silêncio se puseram a caminho.
O trajeto era curto e ao chegarem na estrada, o pai
disse que ele deveria ir só. Foram apenas essas as palavras do pai para ele.
Assim, se dirigiu para a fazenda, olhando para o lado que o pai fora e vendo
sua silhueta sumir em meio a vegetação que ladeava a estrada.
Mais um pouco e estava na casa do Sr. Jessé. De longe
percebeu o burburinho e o movimento das pessoas que apesar de ser ainda muito
cedo, já estavam ali. Se aproximou
lentamente da casa e foi notado por uma das mulheres da cozinha, que o chamou
pelo nome dizendo:
— Quinzin, vai merendar.
Quinzin tentou dizer que já tinha feito seu desjejum,
mas viu ela sumir no meio das pessoas. O jeito foi obedecer e institivamente
seguiu em direção ao local onde havia almoçado no dia anterior, que se
encontrava cheio de pessoas.
Uma mulher deu a ele uma caneca com leite e indicou
uma mesa onde haviam de pães e outras quitandas. Pegou algumas unidades e se
deliciou com o gosto. Eram novidades para ele, que mesmo não estando com fome,
se apressou em comer.
Ouviu alguém dizer outra vez: “Tadinho, tão pequeno e
magrinho, judiado demais esse menino!” Olhou em volta e viu que era Dona Santa,
esposa do Seu Jessé que fizera tal afirmação. Ficou com certo medo, lembrando
das ameaças que o pai fizera na véspera. Mas ficou mais tranquilo ao ver que
ela se dirigia a ele, perguntando:
— E então, menino, pronto para mais um dia?
Quinzin não teve palavras. Apenas assentiu com um
movimento de cabeça.
Viu um trabalhador da fazenda se aproximar e perguntar
para dona Santa:
— É o filho que restou do Buíca?
— Sim, respondeu veladamente a senhora.
— Pobrezinho desse menino, respondeu o homem.
Quinzin se surpreendeu por aquele homem dizer o nome
de seu pai, ou o apelido pelo qual era conhecido. Raramente vira alguém
chamá-lo daquela forma, apenas de algumas pessoas na festa de Folia do Divino e
naquele domingo em que foram à vila buscar mantimentos para a semana.
Aos poucos, as pessoas foram deixando aquele lugar e
ele se viu sozinho. Sem saber para onde ir, resolveu permanecer até que alguém
viesse chamá-lo e indicar o que deveria fazer.
Com alegria viu
Dimas se aproximar e de maneira amistosa, chamá-lo para começarem o trabalho.
— Vem comigo, Quinzin, hoje vou te passar as tarefas.
E você vai ter que se virar sozinho, pois não posso ajudar, tenho muito serviço
no curral.
Foram para a horta e Dimas indicou a Quinzin quais os
canteiros que deveria molhar e onde deveria limpar das ervas daninhas. Mas,
antes da horta, era preciso recolher os ovos. Não poderia esquecer que tinha
que pegá-los de manhã e de tarde.
— Vem comigo que quero te mostrar uma coisa, disse.
Foram até a frente da casa onde havia um jardim com
diversas plantas ornamentais. Eram roseiras, orquídeas, lírios, samambaias de
chão, e outras que ele não conhecia. De imediato se encantou com elas. Dimas
pediu que ele todos os dias, nesse tempo de seca, além da horta, molhasse e
limpasse aquele local. Poderia pegar água bem pertinho, no bebedouro das vacas
que ficava no curral em frente. Recomendou que cuidasse muito bem pois eram
daquelas plantas que Dona Santa retirava as flores que adornavam o oratório
onde ficavam seus santos de devoção.
Quinzin se lembrou da voz suave e do semblante terno
de Dona Santa e prometeu a si mesmo que cuidaria muito bem daquele lugar.
Viu Dimas sumir em meio às tabuas do curral cheio de
reses àquela hora e foi cuidar de sua obrigação. Recolheu os ovos, depois foi
para a horta e molhou direitinho os canteiros. Depois, regou e limpou as
plantas de Dona Santa e voltou à horta para limpar os canteiros. Observando
melhor tudo o que havia ali em volta, compreendeu que nunca faltaria trabalho
para ele, pois o local era bem grande, com uma variedade imensa de plantações.
Estava feliz e fazia com zelo e atenção o que lhe fora recomendado.
A rotina do dia anterior se repetiu. No meio da manhã,
uma das mulheres da cozinha veio chamá-lo para merendar, e Quinzin, apesar de
não estar com fome, obedeceu.
No caminho, viu uma velha senhora idosa, debruçada
sobre algo redondo, esquisito. A mulher que fora chamá-lo, vendo que ele a
observava, se apressou em dizer:
- É Dôrinha, uma velha que mora aqui desde menina.
Dizem que é louca, e se ela te dizer alguma coisa, não ligue. Ela não está mais
certa, e a única coisa que ainda faz é tecer rendas de bilro. Que aliás, faz
muito bem feito.
Rendas? Bilro? Que palavras eram aquelas? Por timidez
ou cuidado, resolveu ficar calado, afinal, tinha outras preocupações e
obrigações naquele dia.
Comeu a merenda que lhe deram e voltou ao trabalho. Na
volta, observou a velha Dôrinha, desta vez, mais detalhadamente. Tinha a pele
negra e os cabelos desgrenhados e brancos, com um cachimbo no canto da boca que
parecia apagado. Apesar da idade,
mantinha os olhos fixos no local onde estavam um número grande de agulhas, e
movimentava com imensa destreza uma espécie de palitos com um algo parecido com
casca de coco tucum na ponta. Por alguns instantes ficou a observar seus
movimentos, interrompido em seu torpor pelo olhar que a ela lançara em direção
a ele, voltando sua atenção para o trabalho. Foi o suficiente para Quinzin se
apressar em voltar para a horta.
Chegou a hora do almoço e ele novamente, se viu em
meio àquela aglomeração de pessoas, algumas cujas feições iam se tornando
familiares. Destacavam-se no meio daquelas pessoas Dimas, Dona Lena, Dona Santa
e Seu Jessé.
A tarde, transcorreu sem novidades. Apenas fora
interrompido em seu trabalho quando Dona Lena o chamou para ir até a cozinha
para merendar. Ficou sem graça, pois não estava acostumado a ser tratado
daquela maneira. Desta vez Dona Lena disse que quando chegasse a hora, seja
para lanchar ou almoçar, era para ele vir, pois nem sempre haveria alguém para
chamá-lo. Degustou as quitandas, tomou o suco e se sentiu feliz e agradecido.
Ele olhou para aquela senhora, tão gentil e cuidadosa com ele, sentiu ali a saudade
de sua mãe. Olhou em volta e viu que as pessoas que ali passavam tinham todas
um semblante bom, não havia cara ruim nem sinais de violência ou raiva.
Imaginou vivendo ali, no meio de gente bondosa e feliz.
Se apressou a voltar ao trabalho, pois precisava
terminar de limpar um extenso canteiro de couve. Trabalhando sozinho, imerso em
seus pensamentos de criança, lembrou que naquele
dia Dimas perguntou se ele sabia ler e escrever. Encheu os olhos de lágrimas ao
dizer que não. Recordou que dos irmãos mais velhos, Dé e Tiquinho já haviam ido
na escola. Ele, Toim e Dió, não tiveram oportunidade de aprender.
No fim da tarde, Dona Santa veio até ele, dizendo que
era hora de ir para casa. Ficou surpreso quando ela entregou a ele uma pequena
sacola com algumas peças de roupas, além de uma pequena marmita com comida.
— São usadas, mas estão em bom estado, e até que você
cresça, servirão. E essa comida é para você e seu pai jantarem. Agora pode ir.
Quinzin, ainda receoso, mas convencido que tinha que
ser forte e não ter medo de andar sozinho na estrada, tomou o rumo de casa.
Rapidamente se viu diante da casinha simples, que
embora fosse palco de inúmeros momentos de tristeza, paradoxalmente era onde
estavam suas melhores lembranças, como de sua mãe cantarolando para embalar seu
sono ou as brincadeiras com os irmãos.
Deu a volta pelos fundos, abriu a porta da cozinha,
colocou a sacola de roupas sobre o jirau e a marmita com comida sobre o fogão.
Desceu para o terreiro e foi dar milho para as
galinhas e comida ao porquinho, que como sempre, repetiu a cantilena com
barulhentos gritos e sua fome incontrolável.
A tarde ainda se fazia presente e as últimas luzes do dia teimavam em
permanecer. Cores, formas e beleza juntas tornavam ainda mais belo aquele
momento.
Viu ao longe que o pai estava chegando e resolveu
voltar para casa, imaginando que ele iria ligar o rádio e gostar da comida que
Dona Santa enviara. Era bom ouvir canções ou mesmo aquele falatório que nem
sempre conseguia entender, mas gostava.
Ao se aproximar, foi surpreendido pelo grito:
— Moleque, o que é isso?
Tremeu e sentiu o chão lhe faltar. Em segundos,
procurou pensar sobre o que fizera de errado, afinal, nem adentrara direito a
casa, fora logo dar comida aos animais domésticos...
Viu o pai surgir na porta da cozinha, com aquela
conhecida expressão de ódio e terror. E gritou:
— O que é isso?
Quinzin viu que ele tinha nas mãos a marmita de comida
e a sacola de roupas que trouxera.
Trêmulo e quase sem voz. balbuciou:
— Eu ganhei.
— Você foi pedir cosias na casa dos outros, moleque?
— Dona Santa me deu...
Foi a gota d´água para o horror explodir. O pai jogou
a marmita de comida em sua direção, acertando em cheio no peito franzino.
Instintivamente o menino tentou correr para se defender, mas era tarde, estava
paralisado pelo medo. Viu o pai crescer, se tornar um gigante e vir em sua
direção com o relho que fazia as vezes de cinto, e ainda da porta da casa deu a
primeira lapada.
Sentiu imensa dor e aquele relho maldito a cortar suas
carnes. Viu quando o pai levantou a mão e deu a segunda chibatada, desta vez
muito mais violenta, no pequeno e delicado rosto. O sangue quente começou a
escorrer pela face. Jogou-se ao chão esperando mais e mais pancadas, quanto
ouviu um estampido, seguido de uma voz forte e firme, que gritara:
— Pare com isso! Você quer matar esse menino?
De olhos fechados e sentindo muita dor, viu apenas o
pai dizer que ele precisava ser corrigido, pois andara pedindo coisas na casa
dos outros. Reconheceu pela voz quem estava ali: o Sr. Jessé.
Não conseguiu ver mais nada. Sentiu apenas que alguém
o pegava nos braços. E acordou horas mais tarde.
Sem abrir os olhos imaginou, ainda sem entender o que
havia acontecido, que a mãe viera salvá-lo. Aos poucos foi despertando e
reconheceu a figura de Dona Santa a seu lado, acompanhada de Dona Lena e Dimas.
Estava em uma cama limpa, em um local desconhecido e totalmente diferente de
sua casa, de sua esteira. Ainda alternando sonolência, ouviu o que ocorrera.
Seu Jessé, atendendo a esposa, fora até sua casa pedir
que o pai o deixasse morar na fazenda, para que pudesse receber cuidados e
estudar, mas sem perder o vínculo.
Mas, ao chegar, se deparou com aquela cena horrenda,
dos gritos e da agressão.
Como o pai não atendia, o Sr. Jessé precisou fazer um
disparo para o alto, para que tivesse a presença notada.
Ao ouvir o barulho do estampido, assustado, arrefeceu
sua fúria, voltando a ser todo servil e cheio de mesuras.
Vendo o estado do menino, o Sr. Jessé o tomou nos
braços, colocou no cavalo e levou para casa, pedindo ao chegar que Dimas e Dona
Lena cuidassem dele. Até a velha Dôrinha fez suas meizinhas.
Quinzin sentiu que doravante, seria ali sua vida,
junto àquela família. Em seu coração inocente quis perguntar pelo pai, mas
preferiu ficar calado. Ainda sentindo as
dores, conseguiu sorrir, enternecido pelo carinho que estava recebendo.
Sentiu que um novo tempo, uma nova vida começava. Sem
violência e sem gritos. Poderia até, começar a sonhar que talvez um dia
reencontrasse os irmãos.
E quanto ao pai, soube depois que o Sr. Jessé o
demitiu do eito e mandou que deixasse suas terras.
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