sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

SENDAS DO VERBO - III - SOZINHO

 


Os dias passavam e nada de Dé aparecer. Também não soube peo pai nenhuma notícia dos irmãos que foram com os homens, ou mesmo Tiquinho, que ficara na festa de folia e de lá, seguira com aquele casal estranho.

Teve vontade de perguntar ao pai para onde foram os irmãos, mas sentia medo. E mais medo sentia quando o pai saía para trabalhar e o deixava dentro de casa, ordenando que só saísse em caso de extrema necessidade, seja para urinar, ou mesmo outras situações. E se chegasse alguém, nada de responder ou de abrir a porta.

No começo, Quinzin passava a maior parte do tempo deitado na pequena esteira. Aos poucos, foi se acostumando à nova situação e passou a brincar nos outros cômodos da casa. Só não entrava no quarto do pai, pois tinha medo que ele brigasse ou batesse, por querer saber o que havia lá.

Um dia o pai trouxe um pequeno porquinho e disse que, como ele já era grande o suficiente, precisava ajudar em alguma coisa.  Dali em diante cuidaria de dar milho e colocar água para as galinhas e para o pequeno leitão. E aos poucos iria ensiná-lo a cozinhar. Não precisava sentir medo, pois onde moravam era lugar seguro.

Aos poucos foi adquirindo confiança. O pai o ensinou a cozinhar feijão, colocando no fogo baixo, em brasa e sem labaredas, renovando a água sempre.

Quinzin estabeleceu uma rotina mais ou menos organizada. De manhã, tomava sua merenda, sempre com leite que o pai trazia da sede da fazenda, e cuscuz ou beiju. Às vezes tinha rapadura e tapioca.

E assim que o pai saía, ele se punha a cuidar das obrigações. Dava milho para as galinhas, se divertindo com o movimento dos espertos pintinhos e admirando a multiplicidade de cores que cobriam as penas. Repunha a água e colocava restos de comida que o pai trazia para o porquinho no chiqueiro.

Todos os dias cumpria aquela rotina. Começou a notar que cada vez mais os animais se acostumavam à sua presença. O porquinho, assim que ele se aproximava fazia um barulho intenso, mal esperando que ele derramasse a comida, ou lavagem, como o pai chamava, sobre o cocho. E ele deixava-se ficar um certo tempo ali, vendo o animal comer e olhar para ele, como a pedir mais comida. Depois, ia para o riacho, na verdade, um filete de água com uma pequena bica que caia em um poço raso onde inúmeros pequenos peixes que ficavam para lá e para cá.

Divertia-se quando começava a limpar as panelas e os peixinhos se aglomeravam. Eram pequenos e prateados, que sob a luz do sol pareciam mais bonitos ainda. E Quinzin se encantava com aquele ir e vir dos pequenos seres.

De início, fugiam dele, mas aos poucos se acostumaram e vinham em número cada vez maior para usufruir as migalhas que vinham nas panelas eu lavava. Era seu momento mais feliz do dia. Por horas ficava ainda a lembrar os movimentos deles na água.

Apressava-se em voltar. Tinha que cozinhar feijão e era preciso ficar atento e ter cuidado. Se deixasse queimar, a surra era certa. Para evitar que acontecesse, ficava o tempo todo por perto do fogão até que os grãos estivessem amolecidos. No início, tinha medo de se queimar e dificuldade em tirar a panela do fogo, mas aos poucos se acostumou e conseguia mais facilmente movê-la para fora da chapa.

Uma manhã de domingo o pai falou que iria levá-lo à vila. Quinzin, apesar de desconfiado, se animou. Não tinha em sua lembrança de criança uma ida à vila, mas pelo que seus irmãos falavam, era um lugar interessante.

Após merendar e cuidar dos animais, tomaram banho no riacho, trocaram de roupas e se puseram a caminho do vilarejo. Caminharam por cerca de uma hora por ruma estrada larga. Finalmente, após uma curva avistaram ranchos cobertos de palha e alguns poucos telhados vermelhos. Era ali a vila.

Ouviu do pai a recomendação que não saísse de perto dele em momento algum, que não dirigisse a palavra a pessoas estranhas e não pedisse nada a ele ou a quem quer que seja. O menino ouviu calado, olhar baixo, sabendo que deveria ficar atento e cumprir rigorosamente o que o pai dizia. Se não fizesse assim, correria dois riscos: o primeiro, de não mais acompanhá-lo e o segundo, o pior: levar uma surra.

Foram até um armazém, onde o pai encomendou mantimentos, dizendo que pegaria mais tarde. Ali, viu algo que o encantou: uma espécie de bolas de vidro, cheias de balinhas coloridas. Ficou olhando e mais feliz ainda quando o pai encheu a mão de algumas e o entregou. Ele não tinha muito costume com balinhas. Lembrava que Tiquinho ou Dé vez em quando traziam para ele. Tirou a casca que a envolvia e levou a boca, sentindo uma alegria imensa ao degustar e sentir o doce.

Passaram em outros locais e depois foram a um lugar esquisito, nos arredores do pequeno arraial onde vários homens bebiam e falavam alto na companhia de mulheres em trajes curtos. Notou a presença dominante de uma senhora atrás de um balcão encardido, com o rosto exageradamente pintado e grandes brincos pendurados na orelha.

O pai mandou que ele ficasse sentado em um banco de madeira na entrada e se aproximou do balcão, sendo atendido pela mulher. Pediu algo, que ela colocou em um copo e entregou a ele que levando à boca, bebeu de uma só vez, fazendo uma careta horrenda. Parecia não estar bom, mas o semblante do pai mudou, demonstrando que aquilo lhe fizera bem. Pediu outra e mais outra, repetindo a careta e dando a impressão que era algo ruim.

Enquanto bebia aquilo, levava uma animada conversa com a senhora, que vez em quando olhava de soslaio para ele. A mulher ria alto e Quinzin percebeu que os dois pareciam ser bem conhecidos. Passados alguns instantes, o pai veio até ele e disse que precisava resolver um pequeno problema e que não saísse dali de jeito algum.

Trouxe um pedaço de carne em um prato pequeno e uma bebida escura, que soltava bolinhas. Quinzin ficou ali, absorto, olhando as bolinhas no copo, até que resolveu beber. Tinha um gosto bom, doce, mas era estranho. Aos poucos foi bebendo, se acostumando com aquele sabor até então desconhecido.

Viu que alguns homens olhavam para ele e riam. Ele se arriscou a soltar um sorriso em retribuição, tímido, é certo, mas franco.

Passado algum tempo viu o pai sair de dentro da casa acompanhado da senhora que estava no balcão. Tomou outro gole daquela bebida estranha, fazendo a mesma careta de sempre e enfiou a mão bolso, tirou algumas notas de dinheiro e entregou a ela, que disse para voltar sempre.

Virou-se para o menino e retornando ao semblante habitual, disse:

— Vamos, moleque.

Quinzin seguiu o pai. Viu que ele estava mais rápido e até mais animado.  Sentiu sede, talvez por causa das balinhas e da bebida que tomou. Pediu água ao pai que apenas o ouviu e nada disse.

Caminharam até o grande armazém onde pegaram os mantimentos previamente encomendados e se puseram a caminho da simples e pequena morada. Recebeu um pequeno pacote com algumas coisas que de início lhe pareceram leves, mas que logo começam a pesar.

Sentiu que o pai não o daria para os outros, pois precisava dele. E teve a sensação e a certeza dentro de si que dificilmente reencontraria os irmãos.

Em seu pequeno coração de criança, dolorido e magoado, tinha imensas dúvidas e incertezas. Afinal, o que seria dele? Teria que fazer aquele caminho todos os domingos com o pai? Talvez preferisse ficar em casa, com seus peixinhos na bica d’água, ou com os passarinhos que vinham todos os dias acordá-lo pela manhã.

Recordou os momentos que vivera e das coisas novas que viu, como a bebida de cor escura que o pai lhe dera, as balinhas retiradas daquele monte de potes que giravam, a alegria dos homens daquele lugar estranho... Talvez tivesse se divertido mais com as bolinhas que se formavam no copo que com o sabor. Mas de qualquer forma era gostoso, refrescante e ele nunca provara nada igual. Na festa de folia chegou a ver ao longe algumas garrafinhas como aquela, mas não era para ele ou seus irmãos, conforme dissera o pai.

O sol do meio do dia começou a incomodar e o pai andava em um ritmo mais forte do que ele. As vezes o pai parava, mostrando inquietação e ele tentava apertar o passo. Começou a sentir mais sede e agora, fome. Mas manteve-se firme, vez em quando, quando o pai parava, olhava para ele com a expressão ruim, dizendo algo: “Anda, moleque. Deixa de ser mole!”.

Naquele momento, apertava o passo, apesar das pernas trêmulas e do medo que sentia. Tinha medo sim do pai, e queria que chegassem logo em casa.

Finalmente, chegaram ao colchete que dava acesso à estradinha e mais algumas centenas de metros de caminhada estariam em casa, para alívio do menino.

Tinha sede, fome e sentia dores nos pés, resultado da longa caminhada. Foi com alívio que chegou à porta de casa, e ao adentraram, correu para o pote de água, de onde tirou uma caneca e bebeu sofregamente. Percebeu que o pai estava atrás dele e esperou um tapa, mas isso não aconteceu. Por incrível que pareça, ele estava calmo e aparentemente amistoso.

Enquanto o pai preparava o almoço, acrescido de pedaços de carne que comprara na vila, Quinzin foi ao quintal com a desculpa de buscar água e ver como estavam as galinhas e porcos. Felizmente estava tudo em ordem, no mesmo lugar, sem novidades. Os peixinhos para lá e para cá no riacho, as galinhas com seus pintinhos aproveitando as sombras e protegendo do calor e do sol forte, e o porquinho, que ao sentir sua presença, emitiu sons característicos, como a pedir comida, ainda que não fosse hora.

Voltou para casa e institivamente, olhou em direção da mata onde vira a silhueta de seu irmão Dé pela última vez. Sentiu um nó pesado e forte na garganta e não se contendo, deixou-se quedar ao chão quente do trieiro e chorou, derramou copiosas lágrimas. Um choro sentido, represado de muitos dias. Chorou de saudade da mãe, dos irmãos que se foram e das incertezas que tomavam conta de seu coração. Não precisou quanto tempo ficou ali, mas aos poucos foi se recompondo e a realidade se fez presente.

Com dificuldade, pegou o pequeno balde onde levava água e seguiu em direção à casa. Ao chegar, o pai terminava o almoço que trazia uma novidade, que ele não lembrava do que era. Achou o nome estranho, engraçado até: macarrão.

E como estava com muita fome, pegou o velho e furado prato de esmalte que costumeiramente usava e serviu-se de uma porção de carne de porco, feijão, farinha de mandioca e o dito macarrão. Esperou esfriar um pouco e começou a almoçar. Primeiro pegou um naco de carne, o que mais gostava, depois uma colherada de feijão e finalmente, colocou na boca aqueles fios amarelados, que o pai elogiara. Não era de todo ruim, mas também não era essa coisa toda. Mas comeu calado, matando a fome que sentia.

O restante da tarde foi como os outros dias, diferente apenas pela presença do pai. Ora se deitava na esteira, ora ia até a biquinha ver os peixinhos espertos e coloridos, ora sentava no tronco que ficava nos fundos da casa.

Já no fim da tarde, ouviu o som de tropel de cavalos. Correu e viu surgirem dois homens a cavalo, um deles com uma caixa nas mãos. O pai foi ver quem era e ao reconhecer os cavaleiros, clareou o semblante antes sério e franzido.

Os homens não quiseram descer, apenas entregaram ao pai uma caixa. O outro, apontando para Quinzin, disse dando risadas que, “se ele quisesse, levava também o pequeno”, ao que o pai acenou negativamente com a cabeça. Rápido como chegaram, viraram os animais em direção à estrada por onde vieram, deixando atrás de si os rastros seguidos de uma nuvem de poeira.

O pai, parecendo criança que se encanta quando ganha brinquedo novo, levou para dentro de casa a caixa e com muito cuidado, sobre o jirau, começou a tirar os papeis que a envolviam e logo surgiu algo que para Quinzin parecia novo, desconhecido. Lembrou de ter visto algo semelhante na sede da fazenda do Sr. Jessé, quando foram à festa da Folia.

Era uma caixa de madeira bonita e brilhante, tendo ao lado pequenos cilindros de cores alegres, que o pai prendeu dentro da grande caixa. Ao ver que Quinzin observava atentamente, disse:

— Isto é um rádio. E você nunca coloque a mão, somente eu posso mexer.

Continuou a observar o trabalho do pai e tomou um susto quando ele mexeu em um dos botões e após um estalo, ele ouviu um chiado forte, seguido da voz alta de um homem. Viu o pai mexer em outro botão e ouviu a voz de uma mulher que cantava. Lembrou imediatamente da mãe, que entoava canções para que ele e os irmãos dormissem, mas aquele canto era diferente, havia toques que ele não conhecia.

Era a primeira vez que via um rádio de perto e sentiu que a partir daquele momento se apaixonaria pelos sons e pela alegria que aquela caixinha trazia. Em sua cabeça de criança, tímido e calado que era, tentava imaginar como caberiam em espaço tão pequeno homens e mulheres, até crianças que falavam, cantavam, cada vez de uma maneira diferente.

Quem sabe seus irmãos foram encantados e estariam ali, pequeninos, de volta para cantarem para ele?

Após “fazer o rádio falar”, foi a vez de instalar a antena externa, formada por fios finos ligados no rádio. O pai disse com olhar sério e duro, que os pequenos seres dentro daquela caixa iriam vigiá-lo e que se ele mexesse, contariam para ele. Como sempre, ouviu calado e apenas movimentou a cabeça em sinal afirmativo.

Deitado na pequena esteira onde dormia, ouviu o som até mais tarde quando o pai finalmente desligou o aparelho e foi dormir. Ainda ficou olhando o brilho das estrelas e o clarão da lua que passavam pelas frestas e buracos do telhado. Adormeceu com um sorriso nos lábios e sonhou com a mãe, que cantava canções de ninar para ele e seus irmãos. E com Dé, que no sonho dizia que viria buscá-lo. Acordou com o barulho do rádio e ao levantar percebeu que o pai estava com o semblante mais suave.

A rotina daquele e dos próximos dias foi a de sempre, acrescentado o fato que havia um pouco mais de alegria pela presença do rádio, que trazia canções e falas de pessoas diferentes.

No domingo seguinte, novamente acompanhou o pai ao vilarejo e desta vez, não achou tão longe. Novamente tudo se repetiu. O pai tomando uma bebida esquisita e fazendo caretas e depois sumindo por algum tempo juntamente com a senhora de faces pintadas e voz estranha; e deixando ele sozinho tomando a bebida de cor escura que fazia bolinhas engraçadas e comendo pedaços de carne. A caminhada de volta, foi penosa como no domingo anterior, mas já começava a reconhecer a estrada e logo, chegaram em casa.

Chegou com fome e com sede. Tomou água e foi olhar o porquinho, as galinhas e o riacho com seu poço cheio de peixinhos coloridos e brilhantes. Voltou o olhar com tristeza para a matinha por onde Dé se fora. Não chorou como da vez passada, mas ficou um tempo parado, olhando para o local como a esperar que o irmão aparecesse e dissesse que estava ali perto para protegê-lo e que não se afastaria dele.

Voltou para casa e viu o pai acompanhando uma canção do rádio. Olhou admirado para a caixinha que dizia palavra alegres e emitia belas melodias. Pensou que ali dentro o mundo seria bem mais feliz e divertido, pois não ouvira em momento algum grito ou choro de crianças apanhando.

 

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