Os dias passavam e nada de Dé aparecer. Também não
soube peo pai nenhuma notícia dos irmãos que foram com os homens, ou mesmo
Tiquinho, que ficara na festa de folia e de lá, seguira com aquele casal
estranho.
Teve vontade de perguntar ao pai para onde foram os
irmãos, mas sentia medo. E mais medo sentia quando o pai saía para trabalhar e
o deixava dentro de casa, ordenando que só saísse em caso de extrema
necessidade, seja para urinar, ou mesmo outras situações. E se chegasse alguém,
nada de responder ou de abrir a porta.
No começo, Quinzin passava a maior parte do tempo
deitado na pequena esteira. Aos poucos, foi se acostumando à nova situação e
passou a brincar nos outros cômodos da casa. Só não entrava no quarto do pai,
pois tinha medo que ele brigasse ou batesse, por querer saber o que havia lá.
Um dia o pai trouxe um pequeno porquinho e disse que,
como ele já era grande o suficiente, precisava ajudar em alguma coisa. Dali em diante cuidaria de dar milho e
colocar água para as galinhas e para o pequeno leitão. E aos poucos iria
ensiná-lo a cozinhar. Não precisava sentir medo, pois onde moravam era lugar
seguro.
Aos poucos foi adquirindo confiança. O pai o ensinou a
cozinhar feijão, colocando no fogo baixo, em brasa e sem labaredas, renovando a
água sempre.
Quinzin estabeleceu uma rotina mais ou menos
organizada. De manhã, tomava sua merenda, sempre com leite que o pai trazia da
sede da fazenda, e cuscuz ou beiju. Às vezes tinha rapadura e tapioca.
E assim que o pai saía, ele se punha a cuidar das
obrigações. Dava milho para as galinhas, se divertindo com o movimento dos
espertos pintinhos e admirando a multiplicidade de cores que cobriam as penas.
Repunha a água e colocava restos de comida que o pai trazia para o porquinho no
chiqueiro.
Todos os dias cumpria aquela rotina. Começou a notar
que cada vez mais os animais se acostumavam à sua presença. O porquinho, assim
que ele se aproximava fazia um barulho intenso, mal esperando que ele
derramasse a comida, ou lavagem, como o pai chamava, sobre o cocho. E ele
deixava-se ficar um certo tempo ali, vendo o animal comer e olhar para ele,
como a pedir mais comida. Depois, ia para o riacho, na verdade, um filete de
água com uma pequena bica que caia em um poço raso onde inúmeros pequenos peixes
que ficavam para lá e para cá.
Divertia-se quando começava a limpar as panelas e os
peixinhos se aglomeravam. Eram pequenos e prateados, que sob a luz do sol
pareciam mais bonitos ainda. E Quinzin se encantava com aquele ir e vir dos
pequenos seres.
De início, fugiam dele, mas aos poucos se acostumaram
e vinham em número cada vez maior para usufruir as migalhas que vinham nas
panelas eu lavava. Era seu momento mais feliz do dia. Por horas ficava ainda a
lembrar os movimentos deles na água.
Apressava-se em voltar. Tinha que cozinhar feijão e
era preciso ficar atento e ter cuidado. Se deixasse queimar, a surra era certa.
Para evitar que acontecesse, ficava o tempo todo por perto do fogão até que os
grãos estivessem amolecidos. No início, tinha medo de se queimar e dificuldade
em tirar a panela do fogo, mas aos poucos se acostumou e conseguia mais
facilmente movê-la para fora da chapa.
Uma manhã de domingo o pai falou que iria levá-lo à
vila. Quinzin, apesar de desconfiado, se animou. Não tinha em sua lembrança de
criança uma ida à vila, mas pelo que seus irmãos falavam, era um lugar
interessante.
Após merendar e cuidar dos animais, tomaram banho no
riacho, trocaram de roupas e se puseram a caminho do vilarejo. Caminharam por
cerca de uma hora por ruma estrada larga. Finalmente, após uma curva avistaram
ranchos cobertos de palha e alguns poucos telhados vermelhos. Era ali a vila.
Ouviu do pai a recomendação que não saísse de perto
dele em momento algum, que não dirigisse a palavra a pessoas estranhas e não
pedisse nada a ele ou a quem quer que seja. O menino ouviu calado, olhar baixo,
sabendo que deveria ficar atento e cumprir rigorosamente o que o pai dizia. Se
não fizesse assim, correria dois riscos: o primeiro, de não mais acompanhá-lo e
o segundo, o pior: levar uma surra.
Foram até um armazém, onde o pai encomendou
mantimentos, dizendo que pegaria mais tarde. Ali, viu algo que o encantou: uma
espécie de bolas de vidro, cheias de balinhas coloridas. Ficou olhando e mais
feliz ainda quando o pai encheu a mão de algumas e o entregou. Ele não tinha
muito costume com balinhas. Lembrava que Tiquinho ou Dé vez em quando traziam para
ele. Tirou a casca que a envolvia e levou a boca, sentindo uma alegria imensa
ao degustar e sentir o doce.
Passaram em outros locais e depois foram a um lugar
esquisito, nos arredores do pequeno arraial onde vários homens bebiam e falavam
alto na companhia de mulheres em trajes curtos. Notou a presença dominante de
uma senhora atrás de um balcão encardido, com o rosto exageradamente pintado e
grandes brincos pendurados na orelha.
O pai mandou que ele ficasse sentado em um banco de
madeira na entrada e se aproximou do balcão, sendo atendido pela mulher. Pediu
algo, que ela colocou em um copo e entregou a ele que levando à boca, bebeu de
uma só vez, fazendo uma careta horrenda. Parecia não estar bom, mas o semblante
do pai mudou, demonstrando que aquilo lhe fizera bem. Pediu outra e mais outra,
repetindo a careta e dando a impressão que era algo ruim.
Enquanto bebia aquilo, levava uma animada conversa com
a senhora, que vez em quando olhava de soslaio para ele. A mulher ria alto e
Quinzin percebeu que os dois pareciam ser bem conhecidos. Passados alguns
instantes, o pai veio até ele e disse que precisava resolver um pequeno
problema e que não saísse dali de jeito algum.
Trouxe um pedaço de carne em um prato pequeno e uma
bebida escura, que soltava bolinhas. Quinzin ficou ali, absorto, olhando as
bolinhas no copo, até que resolveu beber. Tinha um gosto bom, doce, mas era
estranho. Aos poucos foi bebendo, se acostumando com aquele sabor até então
desconhecido.
Viu que alguns homens olhavam para ele e riam. Ele se
arriscou a soltar um sorriso em retribuição, tímido, é certo, mas franco.
Passado algum tempo viu o pai sair de dentro da casa
acompanhado da senhora que estava no balcão. Tomou outro gole daquela bebida
estranha, fazendo a mesma careta de sempre e enfiou a mão bolso, tirou algumas
notas de dinheiro e entregou a ela, que disse para voltar sempre.
Virou-se para o menino e retornando ao semblante
habitual, disse:
— Vamos, moleque.
Quinzin seguiu o pai. Viu que ele estava mais rápido e
até mais animado. Sentiu sede, talvez
por causa das balinhas e da bebida que tomou. Pediu água ao pai que apenas o
ouviu e nada disse.
Caminharam até o grande armazém onde pegaram os
mantimentos previamente encomendados e se puseram a caminho da simples e
pequena morada. Recebeu um pequeno pacote com algumas coisas que de início lhe
pareceram leves, mas que logo começam a pesar.
Sentiu que o pai não o daria para os outros, pois
precisava dele. E teve a sensação e a certeza dentro de si que dificilmente
reencontraria os irmãos.
Em seu pequeno coração de criança, dolorido e magoado,
tinha imensas dúvidas e incertezas. Afinal, o que seria dele? Teria que fazer
aquele caminho todos os domingos com o pai? Talvez preferisse ficar em casa,
com seus peixinhos na bica d’água, ou com os passarinhos que vinham todos os
dias acordá-lo pela manhã.
Recordou os momentos que vivera e das coisas novas que
viu, como a bebida de cor escura que o pai lhe dera, as balinhas retiradas
daquele monte de potes que giravam, a alegria dos homens daquele lugar
estranho... Talvez tivesse se divertido mais com as bolinhas que se formavam no
copo que com o sabor. Mas de qualquer forma era gostoso, refrescante e ele
nunca provara nada igual. Na festa de folia chegou a ver ao longe algumas
garrafinhas como aquela, mas não era para ele ou seus irmãos, conforme dissera
o pai.
O sol do meio do dia começou a incomodar e o pai
andava em um ritmo mais forte do que ele. As vezes o pai parava, mostrando
inquietação e ele tentava apertar o passo. Começou a sentir mais sede e agora,
fome. Mas manteve-se firme, vez em quando, quando o pai parava, olhava para ele
com a expressão ruim, dizendo algo: “Anda, moleque. Deixa de ser mole!”.
Naquele momento, apertava o passo, apesar das pernas
trêmulas e do medo que sentia. Tinha medo sim do pai, e queria que chegassem
logo em casa.
Finalmente, chegaram ao colchete que dava acesso à
estradinha e mais algumas centenas de metros de caminhada estariam em casa,
para alívio do menino.
Tinha sede, fome e sentia dores nos pés, resultado da
longa caminhada. Foi com alívio que chegou à porta de casa, e ao adentraram,
correu para o pote de água, de onde tirou uma caneca e bebeu sofregamente.
Percebeu que o pai estava atrás dele e esperou um tapa, mas isso não aconteceu.
Por incrível que pareça, ele estava calmo e aparentemente amistoso.
Enquanto o pai preparava o almoço, acrescido de
pedaços de carne que comprara na vila, Quinzin foi ao quintal com a desculpa de
buscar água e ver como estavam as galinhas e porcos. Felizmente estava tudo em
ordem, no mesmo lugar, sem novidades. Os peixinhos para lá e para cá no riacho,
as galinhas com seus pintinhos aproveitando as sombras e protegendo do calor e
do sol forte, e o porquinho, que ao sentir sua presença, emitiu sons
característicos, como a pedir comida, ainda que não fosse hora.
Voltou para casa e institivamente, olhou em direção da
mata onde vira a silhueta de seu irmão Dé pela última vez. Sentiu um nó pesado
e forte na garganta e não se contendo, deixou-se quedar ao chão quente do
trieiro e chorou, derramou copiosas lágrimas. Um choro sentido, represado de
muitos dias. Chorou de saudade da mãe, dos irmãos que se foram e das incertezas
que tomavam conta de seu coração. Não precisou quanto tempo ficou ali, mas aos
poucos foi se recompondo e a realidade se fez presente.
Com dificuldade, pegou o pequeno balde onde levava
água e seguiu em direção à casa. Ao chegar, o pai terminava o almoço que trazia
uma novidade, que ele não lembrava do que era. Achou o nome estranho, engraçado
até: macarrão.
E como estava com muita fome, pegou o velho e furado
prato de esmalte que costumeiramente usava e serviu-se de uma porção de carne
de porco, feijão, farinha de mandioca e o dito macarrão. Esperou esfriar um
pouco e começou a almoçar. Primeiro pegou um naco de carne, o que mais gostava,
depois uma colherada de feijão e finalmente, colocou na boca aqueles fios
amarelados, que o pai elogiara. Não era de todo ruim, mas também não era essa
coisa toda. Mas comeu calado, matando a fome que sentia.
O restante da tarde foi como os outros dias, diferente
apenas pela presença do pai. Ora se deitava na esteira, ora ia até a biquinha
ver os peixinhos espertos e coloridos, ora sentava no tronco que ficava nos
fundos da casa.
Já no fim da tarde, ouviu o som de tropel de cavalos.
Correu e viu surgirem dois homens a cavalo, um deles com uma caixa nas mãos. O
pai foi ver quem era e ao reconhecer os cavaleiros, clareou o semblante antes
sério e franzido.
Os homens não quiseram descer, apenas entregaram ao
pai uma caixa. O outro, apontando para Quinzin, disse dando risadas que, “se
ele quisesse, levava também o pequeno”, ao que o pai acenou negativamente com a
cabeça. Rápido como chegaram, viraram os animais em direção à estrada por onde
vieram, deixando atrás de si os rastros seguidos de uma nuvem de poeira.
O pai, parecendo criança que se encanta quando ganha
brinquedo novo, levou para dentro de casa a caixa e com muito cuidado, sobre o
jirau, começou a tirar os papeis que a envolviam e logo surgiu algo que para
Quinzin parecia novo, desconhecido. Lembrou de ter visto algo semelhante na
sede da fazenda do Sr. Jessé, quando foram à festa da Folia.
Era uma caixa de madeira bonita e brilhante, tendo ao
lado pequenos cilindros de cores alegres, que o pai prendeu dentro da grande
caixa. Ao ver que Quinzin observava atentamente, disse:
— Isto é um rádio. E você nunca coloque a mão, somente
eu posso mexer.
Continuou a observar o trabalho do pai e tomou um
susto quando ele mexeu em um dos botões e após um estalo, ele ouviu um chiado
forte, seguido da voz alta de um homem. Viu o pai mexer em outro botão e ouviu
a voz de uma mulher que cantava. Lembrou imediatamente da mãe, que entoava
canções para que ele e os irmãos dormissem, mas aquele canto era diferente,
havia toques que ele não conhecia.
Era a primeira vez que via um rádio de perto e sentiu
que a partir daquele momento se apaixonaria pelos sons e pela alegria que
aquela caixinha trazia. Em sua cabeça de criança, tímido e calado que era,
tentava imaginar como caberiam em espaço tão pequeno homens e mulheres, até
crianças que falavam, cantavam, cada vez de uma maneira diferente.
Quem sabe seus irmãos foram encantados e estariam ali,
pequeninos, de volta para cantarem para ele?
Após “fazer o rádio falar”, foi a vez de instalar a
antena externa, formada por fios finos ligados no rádio. O pai disse com olhar
sério e duro, que os pequenos seres dentro daquela caixa iriam vigiá-lo e que
se ele mexesse, contariam para ele. Como sempre, ouviu calado e apenas
movimentou a cabeça em sinal afirmativo.
Deitado na pequena esteira onde dormia, ouviu o som
até mais tarde quando o pai finalmente desligou o aparelho e foi dormir. Ainda
ficou olhando o brilho das estrelas e o clarão da lua que passavam pelas
frestas e buracos do telhado. Adormeceu com um sorriso nos lábios e sonhou com
a mãe, que cantava canções de ninar para ele e seus irmãos. E com Dé, que no
sonho dizia que viria buscá-lo. Acordou com o barulho do rádio e ao levantar
percebeu que o pai estava com o semblante mais suave.
A rotina daquele e dos próximos dias foi a de sempre,
acrescentado o fato que havia um pouco mais de alegria pela presença do rádio,
que trazia canções e falas de pessoas diferentes.
No domingo seguinte, novamente acompanhou o pai ao
vilarejo e desta vez, não achou tão longe. Novamente tudo se repetiu. O pai
tomando uma bebida esquisita e fazendo caretas e depois sumindo por algum tempo
juntamente com a senhora de faces pintadas e voz estranha; e deixando ele
sozinho tomando a bebida de cor escura que fazia bolinhas engraçadas e comendo
pedaços de carne. A caminhada de volta, foi penosa como no domingo anterior,
mas já começava a reconhecer a estrada e logo, chegaram em casa.
Chegou com fome e com sede. Tomou água e foi olhar o
porquinho, as galinhas e o riacho com seu poço cheio de peixinhos coloridos e
brilhantes. Voltou o olhar com tristeza para a matinha por onde Dé se fora. Não
chorou como da vez passada, mas ficou um tempo parado, olhando para o local
como a esperar que o irmão aparecesse e dissesse que estava ali perto para
protegê-lo e que não se afastaria dele.
Voltou para casa e viu o pai acompanhando uma canção
do rádio. Olhou admirado para a caixinha que dizia palavra alegres e emitia
belas melodias. Pensou que ali dentro o mundo seria bem mais feliz e divertido,
pois não ouvira em momento algum grito ou choro de crianças apanhando.
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