Até então, Quinzin esteve apenas uma vez na sede da fazenda do
Sr. Jessé Capistrano. Foi em uma festa,
algum tempo depois que perdeu a mãe. Tinha em sua lembrança as amplas varandas,
o grande número de pessoas presentes, dos arcos feitos de folhas de palmeira e
das bandeirolas coloridas espalhadas no alto por todo o local.
Lembrava também dos homens mascarados que corriam
atrás das crianças, embora ele e os irmãos tivessem ficado quietos ante a
presença daquelas figuras caricatas, mas divertidas. Um deles se aproximou e
perguntou se ele não tinha medo, e mas Quinzin respondeu que não. Diante da
resposta firme do menino, o Palhaço o pegou nos braços e ergueu sobre os
ombros, dizendo em voz alta que ali havia um menino-homem de verdade. Pouco
entendeu, mas apesar do inusitado da situação, sentiu que aquele homem vestido
com aquelas roupas estranhas e com uma máscara imitando um rosto, gostara ele.
A festa continuou e os irmãos se mantinham juntos, vez
em quando observados pelo pai que passava por perto olhando-os de maneira
ameaçadora.
Se encantou quando viu um grande número de pessoas
portando instrumentos musicais como violões, violas, tambores e sanfonas, se
aproximar da entrada da casa e em frente ao arco de folhas de palmeira, sendo
recebidos pelo dono da casa e sua família, que seguravam juntos um pano vermelho cheio de fitas coloridas e figuras
coladas com dizeres que não conseguia entender, entoando um canto para ele
ininteligível, mas que ao fim terminava com várias vozes quase gritando um
“êêêêê...”. Ele e os irmãos, estimulados e empolgados pela cantoria passaram a
entoar aquele final, juntando-se aos cantadores. Soube depois que era a chegada
de uma Folia do Divino que tradicionalmente ocorria em certa época do ano.
E a grande quantidade de comida, uma verdadeira
fartura, acompanhadas de umas bebidas doces e saborosas que depois soube serem
sucos de frutas variadas. Havia doces e muita carne, de porco, de frango. A
carne de gado era assada, cortada e servida quentinha por muitos homens que
ficavam atrás de um grande balcão situado diante de um imenso braseiro. Quinzin
e os irmãos comeram tudo o que lhes era oferecido, apesar das broncas e da cara
feia que o pai fazia quando passava por perto.
E foi ali que ele viu pela última vez um dos irmãos.
Lembrava bem dele; não sabia ao certo seu nome, chamavam pelo apelido de
Tiquinho. Percebeu que um casal veio até eles, observando-os um a um como
mercadoria em prateleira. Lembrou que a senhora, de uma certa idade, apontou
para Tiquinho e disse que “aquele menino” era o que procuravam, pois “tinha os
ombros largos e cara de quem comia pouco”.
Perto da hora de virem embora, Tiquinho foi chamado
pelo pai e com ele sumiu no meio escuridão. Antes de ir, ele olhou para os
irmãos como a se despedir, mas estes não entenderam o que estava por acontecer.
Passado algum tempo, o pai veio, com uma cara estranha e os chamou para irem
para casa. Já era noite alta e os meninos sentiram a falta do irmão. Dé, o mais
velho perguntou ao pai por Tiquinho, mas ele mandou que calasse a boca. Não era
hora de dar satisfação a moleque. Todos sentiram um nó na garganta e Quinzin
chegou a soluçar, mas teve que parar pois o pai o ameaçou com um tapa.
O que teria acontecido com o irmão? Para onde ele
tinha ido?
Engoliu em seco e achou o pai diferente, com um cheiro
estranho e falando enrolado. Trôpego, errava os passos, cambaleante e
tropeçando nas próprias pernas.
Calado como os irmãos, Quinzin continuou a caminhar.
Mas, de seu pensamento, algo não saía: onde estava Tiquinho? Para onde levaram
o irmão? Era o mais divertido deles, que apesar das dificuldades em que viviam,
sempre dava um jeito de proteger a todos.
Deixou-se levar no ritmo da caminhada. No alto, a lua
Crescente e quase Cheia dava impressão de querer cuidar e iluminar o caminho
daquelas crianças. Volta e meia, deparavam com um coqueiro rasteiro, cuja flor
banca brilhava, fazendo um conjunto perfeito com a luz da lua. Algo belíssimo,
não fosse o momento de incertezas e aperto que sentiam no coração.
Viu o pai ficar um pouco para trás e com gestos de
dor, gemer, se contorcer e lançar vômitos. Os meninos pararam, mas um gesto com
a mão do pai os fez andar novamente. Alcançados pelo pai, seguiram calados.
Entraram na pequena e simples moradia e cada um se acomodou no lugar de
costume, ficando vago o lugar onde Tiquinho dormia.
Passados algum tempo Quinzin percebeu pelo barulho do
pai dormira, roncando alto e respirando de maneira difícil. Notou que Dé estava
acordado e resolveu perguntar baixinho sobre o que acontecera com Tiquinho.
Este, vendo que o irmão mais novo não entendera nada, disse que seu pai “deu” o
irmão para uma família que morava distante dali. E que no dia seguinte iria dar
outro irmão, mas ele não sabia quem. Torcia para que fosse ele, pois não
aguentava mais viver ali, daquela forma.
Quinzin ficou intrigado. Seu pai “deu” um de seus
irmãos e daria outro no dia seguinte? Mas, como assim, pois ele era pai, e eles
eram filhos dele. Como dar um filho, retirá-lo do convívio dos irmãos? Sua
pequena cabeça de criança não entendia aquilo.
Demorou a dormir e acordou no dia seguinte com o
chamado de Dé, que já tinha feito suas obrigações matinais. Notaram que o pai
continuava em seu quarto deitado. Não entendeu, mas resolveu ficar quieto. Ao
tomar leite e comer o cuscuz feito pelo irmão, notou o clima de tristeza.
Estavam todos calados, ao contrário dos dias anteriores, quando ocorria uma
verdadeira algazarra naquele momento. Comiam quietos e sem vontade de dizer
nada.
O pai se levantou com o semblante carregado. Respondeu
com um grunhido o pedido de bênção dos filhos e mandou que vestissem roupas
limpas. Foi ao pote de água situado no canto da cozinha e sorveu dois copos
cheios de água. Depois, no terreiro, com uma vasilha de água nas mãos lavou o
rosto. Os meninos perceberam o silêncio e as atitudes fora do comum do pai, que
costumeiramente levantava primeiro que eles.
O silêncio continuou quando ele retornou para o
interior da casa e foi em direção ao fogão à lenha providenciar algo para
comer. Com uma concha pegou um pouco de carne em uma lata, jogou em uma velha e
retorcida frigideira e colocou sobre a chapa, atiçando o fogo para que se
avivasse.
O barulho característico indicava que a carne estava
pronta. Ele retirou e colocou em um prato e adicionou farinha de mandioca,
misturando com uma colher de pau. Enquanto a comida esfriava foi até o pote e
novamente bebeu dois copos cheios de água, àquela hora bem fresquinha.
Calado como os filhos, degustou a iguaria que
preparou. Normalmente, os meninos vinham até ele e pediam uma colher ou mesmo,
raspavam o que restava na frigideira, mas desta vez permaneceram quietos, cada
um em seu lugar.
Após o desjejum, ele foi até o pequeno paiol, pegou
algumas espigas de milho secas, retirou a palha e foi selecionando as mais
finas para fazer seus pitos. Começou a debulhar as espigas, reunindo as
galinhas que disputavam avidamente cada grão lançado ao chão.
Os meninos
continuavam dentro de casa. Estavam de olho nos movimentos do pai, que parecia
inquieto e ansioso. Será que outra tragédia, como a que levara do convívio o
irmão Tiquinho estava por vir?
Estranharam que
o pai não tivesse saído cedinho para trabalhar, como de costume. Também acharam
esquisito ele mandar que vestissem roupas limpas, como se fossem sair. Era
hábito dele, em dias normais ir para o trabalho às primeiras luzes do dia.
Somente aos domingos que costumava ir à uma pequena vila que havia nas
proximidades, sempre levando um dos irmão – quase sempre Tiquinho. Ali adquiria
mantimentos que davam para a semana, como açúcar, farinha e às vezes café, um
pó preto que Quinzin detestava, mas que servia para aquecer nas manhãs frias.
Também era comum passarem na sede da fazenda, onde seu pai ia conversar com o
Sr. Jessé e acabava ganhando algumas peças de roupas usadas e algum corte de
carne de vaca ou de porco. Tiquinho dizia que o pai bebia “cachaça”, um tipo de
bebida que o deixava às vezes alegre ou nervoso. Voltavam normalmente por volta
do meio dia, quando Dé já tinha adiantado o almoço, cozinhando arroz e feijão e
esperando que o pai chegasse para que almoçassem.
O barulho de tropel de cavalos alertou os meninos.
Todos viram assustados pelas frestas da janela uma comitiva de homens montados
em cavalos, seguidos por algumas carroças. Pelo jeito de falar de vestir, os
meninos perceberam que não eram da região. Chamaram o pai pelo nome, que
acorreu a eles, cheio de mesuras e gentilezas e gritou pelos meninos que de
imediato não atenderam ao chamado, pelo medo que sentiam. Foi preciso um berro
mais alto para que, aterrorizados, um a um fossem para perto dele, com o olhar
baixo e um soluço contido e preso à garganta.
Ouviu alguns gracejos e gargalhadas dos homens,
dizendo entre outras coisas “...que gabirus esquisitos”. Quinzin não sabia o que era gabiru, mas
entendeu que não era coisa boa.
Por fim, um dos homens apontou o dedo para Toin e Dió,
mais velhos que ele e mais novos que Dé. O pai olhou para eles, e ríspido
mandou que buscassem suas coisas – algumas roupas em frangalhos – e fossem com
os homens.
Ouviu de Dé o questionamento, de “por quê aquilo”,
seguido de um “Cala a boca, moleque” dito pelo pai.
Foi assim que entre choro dos meninos, puxões de
orelhas e algumas palmadas que o pai colocou à força os dois irmãos na traseira
de uma das carroças, abarrotada de moveis velhos, bugigangas, quinquilharias,
galinhas e porcos. Seus irmãos foram jogados em uma parte muito apertada e
junto a porcos...
Um dos homens, que parecia ser o chefe daquela
comitiva, disse rispidamente:
— Fiquem
quietos que não sou bonzinho como seu pai. Comigo a coisa é diferente.
E saiu chicoteando o ar com um longo e aterrorizador
pedaço de sedenho...
E ele e Dé, com lagrimas nos olhos e soluços viram os
irmãos sumirem na pequena estrada, deixando apenas os rastros paralelos das
carroças, incerteza e medo.
O que viria a seguir?
Ficaram ali frente à casa, paralisados, não
acreditando que em poucas horas perderam três de seus irmãos. E agora? Era ele,
o mais novo, franzino, pequeno e frágil, e Dé, o irmão mais velho, que apesar
de ter mais idade que ele, também era mirrado e pequeno.
Ouviram movimentos do pai dentro de casa, mas não
entraram. Notou o claro ar de revolta no semblante do irmão, que soluçava
baixinho, como que para não chamar a atenção.
Por fim, este pegou a mão de Quinzin e foram para
dentro, dando de cara com o pai fumando e sentado em uma velha cadeira, próximo
ao jirau que usavam como mesa.
Dé, em um átimo de coragem, parou em frente ao pai e
disse:
— Por que você fez isso?
Ouviu do pai:
— Cala a boca, seu moleque. Não tenho que te dar
satisfação.
— Não pode fazer isso. Agora está vendendo nossos
irmãos?
Irado, o pai levantou e partiu violentamente para cima
de Dé, dando tapas e retirando da cintura o temido relho que usava para segurar
as calças. Surpreendeu-se quando viu que ele o enfrentava, lutando e tentando
tomar o relho das mãos dele, mas o pai era forte e rapidamente o dominou e
derrubou no chão. Dé, caído, começou a levar sobre o corpo uma saraivada de
pancadas e chibatadas. Quinzin viu o sangue do irmão escorrer e não se
contendo, encontrou coragem e colocou-se entre eles.
O pai ainda levantou o relho em direção a seu rosto,
mas diante do olhar firme do menino, arrefeceu a mão e apenas o empurrou, dando
tempo suficiente para que Dé corresse
para fora e dissesse:
— Foge, Quinzin, senão ele vai te matar.
E saiu correndo em direção à mata que havia nas
proximidades, por onde desapareceu.
— Moleque safado, quando voltar aqui, vai ver. Vou te
moer de pancada, disse o pai.
Quinzin ficou
parado, sentindo as pernas tremerem. Não era possível, há pouco eram cinco
irmãos e de uma hora para outra só restava ele? Para onde foi e o que fizeram
com Tiquinho, Dió e Toin? Para onde eles foram levados? E se Dé, com medo do
pai não mais voltasse para casa?
Por longas horas permaneceu paralisado, perdido,
esperando para qualquer momento a retaliação do pai. Sentia o peito apertado,
as pernas trêmulas e não teve vontade de mais nada. Foi em busca de seu canto,
na pequena esteira que dormia e deixou-se ficar ali.
Viu o pai aparecer na porta do quartinho e dizer:
— Agora, você pode escolher onde dormir.
Teve vontade de
responder, mas não conseguiu. Apenas moveu os olhos em direção a ele, que se
afastou rapidamente. Pelos barulhos que fazia, tinha ido rachar lenha e limpar
com uma enxada as proximidades da casa.
Chegou a hora do
almoço e ele continuava deitado. Adormeceu, sonhou com os irmãos, com a mãe e
com a mesa de doces da festa da sede da fazenda. Como seria bom se aquela festa
acontecesse sempre. E como era bom ganhar doces e afagos, ainda que fosse de gente
que não conhecia.
Até o temido palhaço
da Folia do Divino que o pegara nos braços parecera amistoso. Apesar do medo
que outros meninos tinham, ele não, ficara ali perto, admirando aquela figura
única, até então desconhecida para ele.
Pelo meio da tarde
saiu do quarto e viu o pai ao longe, consertando uma cerca que protegia o local
onde as galinhas costumavam botar ovos. Sentiu medo. Olhou em redor e não viu
sinais de Dé, o último dos irmãos que lhe restara.
Dé não fora “dado”,
não seguira com ninguém, portanto, onde estaria ele? Será que algum animal
bravio, como as pessoas diziam que tinha muito naquele mato o teria pego? Já
tinha ouvido histórias terríveis de onças, de lobos, cobras e outras feras.
Sentiu àquele momento imensa falta do irmão.
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