O cair da tarde trazia certa melancolia à
Fazenda Nova America. Da pequena calçada de cháo batido,escorada por toras de madeira, eu ouvia os recados aos ouvintes de
diversos rincões do Brasil, enviados pelo comunicador Morais Cesar, através da
Rádio Brasil Central AM de Goiânia. E observava ao longe a fumaça intermitente que saia na chaminé da casa grande da fazenda
vizinha, que pertencia ao meu avô.
Meu avô Cícero Américo era um homem de
hábitos e costumes diferentes dos demais da região. A começar pela diferença no
trajar. Era Juiz de Paz e Sub-Promotor na pequena Araguaçu, cidade
próxima à fazenda, e vestia-se com elegância e refinamento. Não trabalhava
na roça, tinha agregados e meeiros que cuidavam da lavoura. Possuía muitas
cabeças de gado, cuidados e manejados por dois vaqueiros. Cultivava o hábito de
jantar entre quatro e meia e cinco da tarde. E por volta de nove horas da noite,
ceava ao lado de minha avó. Antes disso aproveitava para tocar bandolim e
cavaquinho, suas diversões prediletas.
Mas Vovô gostava mesmo era de política. Promovia sempre reuniões com os figurões locais, mas sua casa, mesmo sendo na fazenda era cheia de gente do povo. Vinham pedir conselhos, ajuda em causas da justiça local
e, na maioria das vezes buscavam de reparação
moral às moças ofendidas. Vovô não perdoava o infrator. Fez mal à moça, ou casava para
consertar o mal feito ou comia severa cadeia. E com base nos severos costumes e
códigos de conduta informais da época, considerava-se desonra de moça tamanha
desfeita. Para reparar o mal somente casando. Se não contraisse matrimônio, depois que conseguisse se livrar da cadeia o indivíduo corria serio risco de encontrar pela frente algum
facão bem amolado.
Vovô não tinha paciência era com menino,
principalmente os barulhentos e chorões. Quando estava no pequeno
escritório ou na sala de jantar – onde ficavam os potes cheios de água para
beber – não admitia sequer a presença dos pequenos ali perto. Tudo isso era atenuado
pela figura terna e generosa de minha avó Genoveva, que sempre tinha pedaços de
requeijão, rapadura ou doce de leite para a petizada.
Desviei minha atenção e meus pensamentos
quando vi a silhueta de meu pai ao longe na pequena e irregular estrada que
dava acesso à roça de abacaxis. Vinha a pé, lentamente, com a enxada ao ombro. Carregava
em seu rosto nitidamente a fadiga do dia. Aproximando-se não me contive e fui
ao seu encontro. Papai, apesar do cansaço e da camisa molhada de suor teve
forças para me abraçar e me carregar nos ombros.
Hora de banho de riacho e depois, jantar na
pequena sala da casa simples da Fazenda Nova América.
Aquela noite aconteceria algo especial.
Uma emissora de rádio situada em outro país, de cujo nome não me recordo transmitia
para o Brasil e América do Sul em ondas curtas um programa de apenas uma hora,
cujo conteúdo eram composições de Johan Sebastian Bach. Ia ao ar às sete e
meia da noite de um dia qualquer da semana. Momento em que todos em casa faziam
respeitoso silêncio. Meu pai ia para o pé do velho rádio ABC a Voz de Ouro, “o
violão alguém trazia” e ele punha-se a ouvir e dedilhar os acordes
das belas sinfonias.
Findo o programa, meu pai punha-se a tocar “de
ouvido” o que conseguira assimilar no programa. Em pouco tempo estava tocando Bach
no velho violão - ao seu modo.
Dia desses, em diálogo com amigos na rede social
twitter, começamos a falar das composições de Bach. E o coração imediatamente adentrou
a saudade contida em seus recônditos. Viajou ao tempo em que um homem como meu
pai, depois de um dia duro de trabalho na roça, sob sol inclemente
ou chuva incessante, sentava ao pé
de um velho rádio ABC - A Voz de ouro e tirava de mãos rudes e calosas
acordes ao violão. De belas composições de Bach.
Estão cada vez melhores as crônicas do nosso Escritor Goiano! Essa, por exemplo, nos remete às nossas próprias lembranças boas da infância. Bons tempos! Lembranças muito bem contadas e vividas!
ResponderExcluirGrato por nos brindar com essa rara peça!
Reinaldo Bueno
Emocionante sinfonia é o teu conto literário Ilmo. Autor que nos faz sonhar tempos lontanos que não vivemos mas cuja beleza apreciamos pelos teus versos.
ResponderExcluirSempre espero teu convite , ansioso para ler, sinto me privilegiado por freqüenta-lo , por compartilhar em prosa.
Num mundo tão caótico,político,tenso, violento, teus ensaios surgem refrescantes , obrigado Ilmo. Autor por compartilhar conosco tua generosa literatura. SHALOM
Maravilha.. convivo todos os dias na simplicidade da natureza e na grandeza da obra divina.
ResponderExcluirEssas histórias de família me tocam profundamente.
Obrigada Paulo.. texto que é uma viagem instigante e única.
Que coisa heim? antigamente então, o rapaz que se "engraçasse" com uma moça era obrigado a assumir compromissos? Podia voltar essa lei. Muitos marmanjos iriam pensar mais de duas vezes antes de fazer algo.
ResponderExcluirA emissora de rádio não era a bbc não? A única que eu me lembre que recebia sinais de rádio.
Parabéns Américo. No aguardo da próxima crônica.
Muito obrigado pela crônica. Gostei muito!! Trouxe boas recordações.
ResponderExcluirEis, então, suas raízes do gosto pela cultura e a política. Bela história, Américo! Grande abraço.
ResponderExcluirSua linda história me emocionou porque lembrou muito a minha. Também tenho raízes no interior (Pirenópolis) e vivi numa fazenda nos moldes que você descreve.
ResponderExcluirTransforme esse texto num conto e publique-o, ele é muito bem escrito. Os jovens da atualidade precisam conhecer melhor o Estado em que vivem.
Parabéns pela singular postagem.
Veja bem os extremos. Ele é um homem rude, que trabalha do cabo da enxada, mas suas mãos calejadas têm a sensibilidade de tocar uma obra de Bach.
ResponderExcluirLinda postagem. Parabéns.
E eu ainda não tinha deixado a minha impressão aqui! Falei desta crônica em muitos lugares, trabalhei-a na sala de aula no curso de letras e não contei aqui da minha admiração!
ResponderExcluirMas ainda está em tempo. Foi uma das melhores deste ambiente! Parabéns, amigo cronista!
Suas histórias sempre me emocionam, me tocam de alguma forma... mesmo sem nunca ter tido vivenciado algo parecido. Linda Crônica, fico sem palavras diante de tanto talento e uma realidade que corre nas veias, que lindaaa!!! Adoro, Parabéns!
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