Zé de Lucindo andava inquieto nos últimos
dias. Ficara sabendo por parte de seu vizinho Chico da Veia Tonha que dariam no
próximo fim de semana uma treição na fazenda do Amaralzinho das Dornas. E Zé de
Lucindo tinha especial interesse em comparecer à casa do Amaralzinho, que
tinha umas filhas bonitas e ele andara se engraçando com a do meio, já moça feita,
muito formosa e bonita de morrer - até já tinham trocado alguns olhares.
Era a oportunidade que tinha para se aproximar
mais da moça e quem sabe, tratar um namoro dos dois. Amaralzinho tinha fama de
caroquento e casca-grossa, mas pensava que se fizesse boa presença no trabalho na
roça e chegasse bem apessoado e alinhado, montado em seu cavalo alazão de
arreios prateados, ele o visse de forma mais complacente e permitisse que
começasse a cortejar a moça.
Se desse errado a conversa com o pai da
moça, serviria de consolo o fato que depois do trabalho era um farturão danado.
Embora treição fosse uma espécie de mutirão feito de surpresa ao dono da roça,
era muito comum nas redondezas. Como havia fartura de criação naqueles tempos,
era certeza que um capado iria para o tacho, bem como muitas galinhas e frangos
canela amarela. E sempre aparecia um tocador de sanfona e um violeiro que
garantia a alegria da festa depois do trabalho. Era Catira e modas de viola de
dar gosto. E umas doses de pinga boa serviriam para afogar as mágoas.
O que mais o inquietava era que ele tinha
adquirido um alazão novo, inteiro ainda, muito bonito e de porte grande, porém
desde o começo da semana o malvado do animal sumira do pasto. Sabe como é
cavalo inteiro, não pode sentir um cheiro diferente que não há cerca que
resista. Procurara nas redondezas e não tivera nenhuma noticia do fujão.
Por um lado estava tranqüilo, não perderia
o animal, pois os vizinhos de fazenda eram corretos e ao ver um animal daqueles
procurariam saber quem era o dono. Mas o sábado se aproximava e nada do cavalo
aparecer.
Seu primo Zelino Capador que morava de agregado
ali perto tinha uma eguinha velha, troncha das duas orelhas. Ele não confiava
em uma égua assim, mas o tempo urgia e ele não via outra opção senão tomar
emprestado a tal égua troncha. Sabendo que o primo era ladino demais, teria que
oferecer outra coisa em troca. Pensou nas pingas que tinha guardadas desde a
festa de São João, já que o primo gostava de umas goladas. Não queria se
desfazer das pingas, mas quando lembrava a possibilidade de poder ficar perto da
filha do Amaralzinho, melhor abrir a mão para o primo e não perder a
oportunidade. Afinal o Amaralzinho não fazia festas e somente em um dia treição
poderia ir lá sem arranjar desculpas.
Chegou sexta-feira, véspera da treição e
logo cedo ele colocou seu plano em prática. Como não sabia como se comportaria
a égua troncha, para não assustá-la resolveu mandar suas ferramentas – foice,
enxada e facão pelo Chico da Véia Tonha, que iria de carroça. Mandou junto um
parelho de roupas velhas, de trabalhar na roça.
Fazia questão de ir bem vestido, com roupas
novas. Adquirira um terno de linho com calça branca e camisa de casimira azul e
botinas rangedeiras novas. Sua primeira impressão tinha que ser boa – para o Amaralzinho
das Dornas e também para a moça que ansiava cortejar.
Custou certa dificuldade o empréstimo da égua
troncha junto ao primo. Com uma conversa mole e ladina, pois sabia do interesse
do Zé na filha do Amaralzinho, se pôs a extorqui-lo. Depois de muita arenga e
justificativas para não emprestar, arrumando desculpas esfarrapadas que poderia
precisar do animal se pintasse algum serviço, acabou cedendo em troca de três
garrafas de pinga e um canivete novo que Zé trazia na cintura – alegou que o
seu não estava mais servindo.
Como Zé tinha seus objetivos cedeu ao primo
o que ele queria. Se saísse da casa do Amaralzinho com uma promessa de namoro,
seria até barato as ladinezas do primo. E pôs-se a caminho de casa, montado em
pêlo na égua que, parecendo jumento, era dada a empacar. Saía de lado, fora do
caminho correto, um trabalhão danado.
Quase não dormiu de noite e ao cantar do
galo, levantou, coou o café, deu milho e rapadura para a égua, que começou a
comer muito devagar e foi se arrumar. Fez a barba na navalha, tomou banho no
córrego – tava fria aquela madrugada, mas nem se incomodou. Vestiu seu terno de
calça branca e camisa de casimira azul, pôs o cinto largo, calçou a botina
rangedeira – usava até meias aquele dia – deu uma caprichada no cabelo mais uma
vez e empertigado, ao aparecer da primeira barra do dia no nascente, pôs-se a
caminho da casa do Amaralzinho.
O duro é que a danada da égua andava
devagar e a viagem não rendeu o esperado. O sol foi nascendo, subindo,
esquentando e ele nada de chegar. Foi com muito custo e suado que avistou a
sede da fazenda com toda a gente da vizinhança reunida e pronta para o trabalho.
Viu o Amaralzinho finalizando os agradecimentos e a merenda começando a ser
recolhida. Viu a silhueta da moça que pretendia quando todos pararam para
observar sua chegada.
De repente a égua deu um pulo e ele,
absorto como estava se viu repentinamente no chão. Mal percebeu a correria de
um cachorro grande atrás de uma porca. Passaram voando em frente à égua que se
assustara e pulara, jogando-o ao chão. Como havia chovido de véspera virou
somente lama e barro, na roupa e no rosto. E a égua saíra em desabalada
carreira, se escondendo sabe-se lá onde. Enlameado e envergonhado não teve nem
vontade de abrir os olhos. Quando vieram os companheiros levantá-lo e verificar
se ele não estava machucado, viu de rabo de olho as filhas do Amaralzinho rindo
dele. Aquilo aumentou ainda mais sua vergonha. As risadas e a caçoagem batiam
como martelo em sua idéia.
Envergonhado, foi até o riacho se lavar,
vestiu a roupa que mandara pelo Chico da Véia Tonha e amuado e sem graça
empunhou a foice e foi para a roça. Ao fim da tarde, não quis ficar para a Catira.
Resolveu ir embora, pois não aquentava mais ouvir o apelido que lhe deram
naquele dia: “Zé Cai da Égua”.
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