quinta-feira, 3 de novembro de 2011

INFÂNCIA

“é assegurado à criança o direito à vida… à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar… além de colocá-los a salvo de toda a forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. (art. 227 CF)

Não fora uma noite das melhores. Tivera pesadelos, sonhara com sua mãe, com seu padrasto Bené ameaçando mais uma surra; sonhara também com sua irmã pequenina adoentada. Foi com alívio que vislumbrou pela abertura no telhado os raios solares parecendo querer trazer-lhe desejos de um dia feliz.
Levantou-se meio sonolento, procurou pelo seu Tio Pedro, mas ele já tinha ido trabalhar. Despertou de sua letargia ao ouvir sua avó mandando-o escovar os dentes para tomar café. Encantou-se com dois pequenos pássaros coloridos que se bicavam carinhosamente, numa demonstração natural de ternura.
Após a higiene, tomando leite e comendo pão, lembrou dos pesadelos que tivera, querendo saber se aquilo fora mesmo sonho ou realidade, constatando aliviado que fora mesmo um pesadelo. Não tinha ainda noção, na ingenuidade de seus seis anos, do que era sonho. Achava que era sua mãe que vinha visitá-lo escondido do padrasto, que não gostava dele. Mas não entendia que, se às vezes, ela vinha toda sorridente, tomava-o nos braços cobrindo-lhe as faces de beijos, prometendo-lhe que logo voltaria para buscá-lo para viverem juntos e felizes para sempre, outras vezes vinha, juntamente com o padrasto Bené, que se punha a aterrorizá-lo com suas ameaças de surra. Seu pequenino coração ainda não sabia discernir o que era sonho e o que era realidade.
Levantou a vista no horizonte, sorriu ao ver uma raia subindo cada vez mais alto, depois outra e mais outra. Imaginou-se sendo uma daquelas raias, para ir bem alto e gritar para sua mãe e sua irmã “olhem aqui! Vocês podem me ver, olhem como eu estou alto”.
Súbito, um berro de seu pai trouxe-o à realidade. Ao virar para saber o que seu pai queria, viu-o crescer, tornando-se imenso, com a aparência de um monstro. Fechou os olhos ao levar o primeiro tapa no pequeno rosto, sentiu as pernas formigarem e doer muito a cada cintada que levava. Tentou, meio zonzo levantar, mas nova saraivada de cintadas o derrubou. Sentiu o gosto acre de sangue na boca. Sentiu ser arrastado em direção a uma pequena casa que havia nos fundos, onde ficava um fogão a lenha – por sinal um dos locais preferidos para suas brincadeiras solitárias.
Ouviu um grotesco “ajoelha aí, agora você vai saber o quando é bom ser danado”. Levou mais um tapa, sentiu alívio quando o pai saiu, porém para logo voltar com as mãos cheias de pedra-brita. Sentiu quando ele colocava as pedras embaixo de seus joelhos. Dor, naquele momento, não sentia. Parecia estar anestesiado. Ouviu ao longe a ameaça do pai, dizendo que se ele saísse dali, apanharia em dobro.
O tempo foi passando e a dor foi chegando. Seus joelhos já feridos pediam saísse dali. Também estava com uma vontade imensa de urinar, mas lembrava-se da ameaça do pai de recomeçar tudo novamente. Ouviu passos, viu seu Tio José passar perto, mas ele apenas olhou. Implorou em pensamento que ele o tirasse daquele suplício, mas ele não o ouvia. As horas foram passando. Sentia muita sede, mas não tinha coragem de pedir água. Sentiu saudade, muita saudade da mãe. Até do Bené, pois quando ele o espancava, o batia, não tinha aquela tortura de colocá-lo com os joelhos sobre pedras. Perdeu a noção do tempo. Via apenas que já era tarde. Aquele longo dia estava acabando. Mal ouviu quando o pai mandou que saísse dali, dizendo que iria tirá-lo da escola, para nunca mais ouvir reclamações dele.
Tentou andar, mas as pernas não obedeciam. Viu sua avó, com um rosto triste e deixando cair uma lágrima. Como queria rever sua mãe.
Mais algum tempo, chegou seu Tio Pedro, seu grande amigo e perguntou a si mesmo: como é que ele deixava que acontecesse aquilo. Não, o Tio Pedro não poderia estar sabendo o que acontecera. Ele o levava para passear, dava-lhe broncas, mas de forma diferente. Sentiu imenso carinho quando se aproximou dele. Sentiu, depois de um dia de horror, que estava seguro. Mas, o que seu coração de criança queria mesmo era estar perto de sua mãe, abraçá-la e se sentir amparado.

Um comentário:

  1. Bem, não sei se foi uma experiência vivida por alguém, mas que a cena já foi realidade em muitos casos, foi sim. E se brincar, é realidade até hoje. Não acho que deixar os filhos fazerem o que querem seja certo, mas tão pouco, serem submetidos atrocidades como esta. Boa reflexão.

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